A Lenda da Meia-Noite | Page 4

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas
que, se vê a alegria do baile, as salas
illuminadas, as danças caprichosas e revoluteadoras, entra pacatamente
como outra hora qualquer, até com mais risos e mais alegrias,
accendendo mais o fogo das walsas, cumprimentando para todos os
lados amavelmente. Se vê o estudioso debruçado sobre os livros,
indifferente e sereno, entra timidamente, nos bicos dos pés, e abafa até
as suas proprias vibrações; se encontra n'um serão de familia a
conversação alegre, o bule de chá em cima da mesa, as cartas do boston
para um lado, um livro para outro, bate á porta discretamente, e
annuncia que é tempo de se recolher cada qual para o seu leito. Ora
agora, se encontra gente que espera com susto, que está prompta a
desmaiar apenas ouvir a primeira badalada que a annuncia, então eil-a
que toma uns ares pavorosos, engrossa a voz, faz entrada solemne,
espalha em torno de si o terror e o assombro. Fóra com semelhante
fanfarrão! É necessario darmos-lhe uma lição mestra! Peço a palavra
para um requerimento.
--Hein? disse lá da mesa do jogo o visconde da Fragosa, que aspirava á
deputação.

--Está concedida, visconde? disse o doutor, rindo.
--Mas que diz você? tornou o visconde muito espantado dos risos com
que os interlocutores do Macedo acolhiam a sua idéa.
--Bem! Passo adiante. Requeiro que para todos os effeitos seja abolida
a meia-noite.
--Approvado por unanimidade e mais um que é o visconde, tornou,
rindo, Lucio Valença. Agora queira o sr. deputado apresentar uma
proposta indicando o modo pratico de se levar a effeito essa medida
importante.
--Proponho, tornou o doutor com gravidade comica, que de ámanhã em
diante affrontemos a meia-noite rosto a rosto, e lhe torçamos o pescoço.
--Mas o meio? o meio? o meio pratico? bradaram Lucio e Leonor.
--O meio é o seguinte: O mau tempo ameaça prolongar-se, e nós ou não
podemos caçar, ou não podemos prolongar a caça por todo o dia, sob
pena de estoirarmos ahi de frio por essa serra. Portanto á noite estamos
frescos e descançados, e podemos protrahir o serão. Proponho que
organisemos um Decameron para zombarmos da meia-noite, como os
narradores de Bocaccio zombaram da peste de Florença. Cada um de
nós, que se sentir para isso com forças, se compromette a compôr uma
historia phantastica, uma lenda, um conto maravilhoso que será lido
aqui ao bater da meia-noite. D'essa fórma affrontamos face a face a
terrivel inimiga do repouso da sr.^a D. Isaura, e, se ella ainda ousar
fazer uso dos seus sortilegios, comnosco se ha de haver!
--Apoiado! apoiado! bradaram todos menos D. Isaura, que soltou um
grito, exclamando:
--Isso é horrivel!
--Não, minha senhora, é uma receita, é um remedio heroico, é um
banho russo. Vou-lhe combater os seus nervos.

--Mate-me, doutor!
--Qual historia, minha senhora! Mato a meia-noite! Verá como
depressa a moda acceita a minha idéa. D'aqui a pouco tempo não se
falla em Lisboa n'outra coisa, e a lenda da meia-noite será o
anti-espasmodico mais empregado.
A idéa de que effectivamente em Lisboa d'ahi a pouco tempo se não
fallaria n'outra coisa foi o que decidiu D. Isaura. Ao mesmo tempo
terminára a partida do voltarete, e um dos jogadores, homem já de
cabellos grisalhos, vivo, espirituoso, illustrado, que no tempo do
romantismo commettera alguns peccados litterarios, exclamou
alegremente:
--Acceitam-me para companheiro! Eu ainda sirvo para uma montaria
aos lobos, vamos a vêr se tambem presto para uma montaria á
meia-noite.
--É acceito com mil vontades, sr. Roberto Soares. Eu já o conheço
como robusto campeão, e assento-lhe praça com enthusiasmo. Agora
cabe-me designar o serviço. Henrique Osorio, você é quem rompe o
fogo.
Henrique inclinou-se em silencio relanceando um ardente olhar á
pallida Isaura.
--Meia-noite e meia-hora! disse o doutor tirando o relogio. Saudemos,
meus senhores, a ultima meia-noite que passa, e vamo-nos deitar.
Todos se riram, e um borborinho alegre encheu d'ahi a pouco os
corredores da habitação. Ainda por algum tempo se sentiu o rumor de
portas que se abriam e fechavam, de passos que se perdiam ao longe, de
vozes que se despediam. Depois caiu tudo em silencio, e só se pôde
ouvir o vento que continuou toda a noite a gemer lugubremente as suas
monotonas queixas.
* * * * *
A previsão do doutor realisou-se. O tempo continuou mau, e

aggravou-se ainda com a chuva que principiava a cair em torrentes. A
noite seguinte passou-se alegremente. Quando, porém, um relogio de
parede, que fôra posto na sala, indicou onze e meia, Isaura fez-se ainda
mais pallida do que era, e houve no auditorio uns taes ou quaes signaes
de commoção.
--A postos, meus senhores! exclamou o doutor alegremente. Firmeza,
companheiros! Do alto d'aquelle relogio trinta minutos vos
contemplam.
Houve de novo entrain, risos e enthusiasmo. N'isto o sino de S.
Martinho deu a primeira badalada da
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