* *
Mãe! eu não sei nada! Eu não me lembro de nada!
Ah! lembro-me!
Lembro-me de ter ajudado a levar pedras para as pyramides do Egypto!
Tambem me lembro de me ter chamado José, antigamente, com meus
irmãos e uma mulher!
Mãe!
Estou a lembrar-me! Tu já fôste a menina loira! Eu já fui o menino
verdadeiro a quem tu davas de mamar! Eu já estive comtigo na terceira
oleografia!
Lembro-me exactamente! Quando tu me beijavas, o sol não doía tanto
na minha pelle!
Mãe!
Estou a lembrar-me!
E as tardes quando iamos todos juntos soltar palavras no caes e vêr
chegar mais laranjas!
Outras vezes juntavamo-nos na praia para nadar melhor do que os
outros e deixar o sol queimar quem mais merecêsse. Já as laranjas
estavam contentes com o que chegasse primeiro! O melhor jovem
ganhava a melhor rapariga. Os outros sabiam aquella que tinham
ganhado. Eu tinha ganho a minha!
De uma vez, quando deixavamos o caes, entornou-se o cêsto das
tangerinas. Foi a alegria! E uma das raparigas pôz-se a cantar o
succedido ás tangerinas a rolar pró mar:
tam tam-tam tanque estanque tangerina bola tangerina boia tangerina
ina tangerininha pacote rôto batuque nú quintal da nóra e o dique e o
Duque e o acqueducto do Cúco Rei Carmim e tamarindos e amarellos
de Mahomet alli e lá e acolá ...
* * * * *
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar historias ricas que ainda não
viageie. Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta côr de
sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de
viagens! Eu vou viajar. Tenho sêde! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou
aprender de cór os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu
lado. Tu a cosêres e eu a contar-te as minhas viagens, aquellas que eu
viagei, tão parecidas com as que não viagei, escritas ambas com as
mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu
quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a meza. Eu tambem
quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa,
como a meza.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
+II PARTE+
+A VIAGEM
OU
O QUE NÃO SE PODE PREVÊR+
A Eternidade existe mas não tão devagar!
(QUADRADO AZUL, 1917).
+PARIS E EU+
Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessario um passaporte.
Pediram a minha profissão. Fiquei atrapalhado! Pensei um pouco para
responder verdade e disse a verdade: Poeta!
Não acceitaram.
Tambem pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado. Pensei um pouco
para responder verdade e disse a verdade: Menino!
Tambem não acceitaram.
E para ter o passaporte tive de dizer o que era necessario para ter o
passaporte, isto é--uma profissão que houvésse! e um estado que
houvésse!
+PARTIDA PARA PARIS+
Á despedida os vizinhos deram-me o melhor conselho: Juizo!
+PARIS+
Em Paris é tudo de carne e osso,--O Sacré-Coeur, O Sêna e a Torre
Eiffel--as casas, as pessoas, os domingos e os outros dias.
Ha em Paris uma Rocha Tarpeia que não é feita de rocha, é feita de
domingos e dos outros dias.
+EU+
Quando digo Eu não me refiro apenas a mim mas a todo aquelle que
coubér dentro do geito em que está empregado o verbo na primeira
pessôa.
+LIBERDADE+
Quando entrei na cidade fiquei sósinho no meio da multidão.
Em redor as portas estavam abertas. A multidão entrava naturalmente
pelas portas abertas. Por cima das portas havia tabolêtas onde estava
collada aquella palavra que sóbe--Liberdade!
Entrei por uma porta. Entrei como uma farpa!
Era uma ratoeira, Mãe! era uma ratoeira! Se eu tivesse entrado como
uma agulha podia ter sahido como uma agulha, mas entrei como uma
farpa, fiz sangue verdadeiro, já não me esquece. Aconteceu
exactamente. Dei um mau geito nos rins por causa da ratoeira! Ainda
me lembro da palavra--Liberdade!
Mãe! Vou contar-te como foi.
Havia dois vazos iguaes. Um tinha um licor bonito. O outro parecia ter
agua simples. Um tinha a felicidade, o outro não tinha a felicidade. Era
á sorte. A casa estava cheia de gente. Ninguem queria ser o primeiro a
começar.
Depois, começaram a beber o licor. Diziam coisas tão felizes! Coisas
quentes que enchem a cabeça toda e deixam os olhos escancarados! Eu
vi-os, Mãe! estavam a augmentar a olhos vistos, juro-te!
Os que beberam do outro vazo não divertiam ninguem. Iam-se logo
embora. E ninguem já se lembrava d'elles.
Só ficaram os que gostavam do licor. Eu
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