A Illustre Casa de Ramires | Page 6

José Maria Eça de Queiroz

até Conselheiros d'Estado: a antiguidade da sua raça, mais antiga que o
Reino, popularisada por uma historia d'heroica belleza, em que com
tanto fulgor resaltavam a bravura e a soberba d'alma dos Ramires; e
emfim a seriedade academica do seu espirito, o seu nobre gosto pelas
investigações eruditas, apparecendo no momento em que tentava a
carreira do Parlamento e da Politica!... E o trabalho, a composição
moral dos vetustos Ramires, a resurreição archeologica do viver
Affonsino, as cem tiras de almaço a atulhar de prosa forte--não o
assustavam... Não! porque felizmente já possuia a «sua obra»--e
cortada em bom panno, alinhavada com linha habil. Seu tio Duarte,
irmão de sua mãe (uma senhora de Guimarães, da casa das Balsas), nos
seus annos de ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua
carta de Bacharel e o seu Alvará de Delegado, fôra poeta--e publicára
no *Bardo*, semanario de Guimarães, um Poemeto em verso solto, o
Castello de Santa Ireneia, que assignára com duas iniciaes D.B. esse
castello era o seu, o Paço antiquissimo de que restava a negra torre
entre os limoeiros da horta. E o Poemeto cantava, com romantico garbo,
um lance de altivez feudal em que se sublimára Tructesindo Ramires,
Alferes-mór de Sancho I, durante as contendas de Affonso II e das
senhoras Infantas. Esse volume do *Bardo*, encadernado em
marroquim, com o brazão dos Ramires, o açor negro em campo
escarlate, ficára no Archivo da Casa como um trecho da Chronica
heroica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Goncalo recitára,
ensinados pela mamã, os primeiros versos do Poema, de tão
harmoniosa melancolia:
Na pallidez da tarde, entre a folhagem Que o outomno amarellece...
Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonçalo Mendes
Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da *Patria* e das

ceias o acclamavam «o nosso Walter Scott», compôr um Romance
moderno, d'um realismo épico, em dous robustos volumes, formando
um estudo ricamente colorido da Meia-Edade Portugueza... E agora lhe
servia, e com deliciosa facilidade, para essa Novella curta e sobria, de
trinta paginas, que convinha aos *Annaes*.
No seu quarto do Bragança abrio a varanda. E debruçado, acabando o
charuto, na dormente suavidade da noite de Maio, ante a magestade
silenciosa do rio e da lua, pensava regaladamente que nem teria a
canceira d'esmiuçar as chronicas e os folios massudos... Com effeito!
toda a reconstruccão Historica a realisára, e solidamente, com um saber
destro, o tio Duarte. O Paço acastellado de Santa Ireneia, com as fundas
carcovas, a torre albarran, a alcaçova, a masmorra, o pharol e o balsão:
o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabellos e barbas
ancestraes derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de
surrões de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos
resmungando á lareira as Vidas dos Santos; os pagens jogando no
campo do tavolado--tudo resurgia, com veridico realce, no Poemeto do
tio Duarte! Ainda recordava mesmo certos lances: o truão açoutado; o
festim e os uchões que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de
Violante Ramires para o Mosteiro de Lorvão...
Junto à fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgada pára...
O enrêdo todo com a sua paixão de grandeza barbara, os recontros
bravios em que se saciam a punhal os rancores de raça, o heroico fallar
despedido de labios de ferro--lá estavam nos versos do titi, sonoros e
bem balançados...
Monge, escuta! O solar de D. Ramires Por si, e pedra a pedra se aluira,
Se jámais um bastardo lhe pisasse, Com sapato aviltado, as lages puras!
Na realidade só lhe restava transpôr as formas fluidas do Romantismo
de 1846 para a sua prosa tersa e mascula (como confessava o
Castanheiro), de optima côr archaica, lembrando o Bobo. E era um
plagio? Não! A quem, com mais seguro direito do que a elle, Ramires,
pertencia a memoria dos Ramires historicos? A resurreição do velho
Portugal, tão bella no Castello de Santa Ireneia, não era obra individual

do tio Duarte--mas dos Herculanos, dos Rebellos, das Academias, da
erudição esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e
mesmo o *Bardo*, delgado semanario que perpassára, durante cinco
mezes, ha cincoenta annos, n'uma villa de Provincia?...! Não hesitou
mais, seduzido. E em quanto se despia, depois de beber aos goles um
copo d'agua com bicarbonato de soda, já martellava a primeira linha do
conto, á maneira lapidaria da Salammbô:--«Era nos Paços de Santa
Ireneia, por uma noite d'inverno, na sala alta da Alcaçova...»
Ao outro dia, procurou José Lucio Castanheiro na repartição dos
Proprios Nacionaes, á pressa,--por que, depois d'uma conferencia no
Banco Hypothecario, ainda promettera acompanhar as primas Chellas a
uma Exposição de Bordados na livraria Gomes. E annunciou ao
Patriota que, positivamente, lhe assegurava para o primeiro numero dos
*Annaes* a Novella, a que já decidira o
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