A Illustre Casa de Ramires | Page 7

José Maria Eça de Queiroz
titulo--a Torre de D. Ramires:
--Que lhe parece?
Deslumbrado, José Castanheiro atirou os magrissimos braços,
resguardados pelas mangas d'alpaca, até á abobada do esguio corredor
em que o recebera:
--Sublime!... A Torre de D. Ramires!... O grande feito de Tructesindo
Mendes Ramires contado por Gonçalo Mendes Ramires!... E tudo na
mesma Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e
setecentos annos depois, na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o
feito! Caramba, menino, carambissima! isso é que é reatar a tradição!
* * * * *
Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonçalo mandou um
creado da quinta, com uma carroça, a Oliveira, a casa de seu cunhado
José Barrôlo, casado com Gracinha Ramires, para lhe trazer da rica
livraria classica que o Barrôlo herdára do tio Deão da Sé todos os
volumes da Historia Genealogica--«e (accrescentava n'uma carta)
todos os cartapacios que por lá encontrares com o titulo de «Chronicas
do Rei Fulano...» Depois, do pó das suas estantes, desenterrou as obras
de Walter Scott, volumes desirmanados do Panorama, a Historia de

Herculano, o Bobo, o Monge de Cistér. E assim abastecido, com uma
farta rêsma de tiras d'almaço sobre a banca, começou a repassar o
Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda a transpôr para a aspereza
d'uma manhã de Dezembro, como mais congenere com a rudeza feudal
dos seus avós, aquella lusida cavalgada de donas, monges e homens
d'armas que o tio Duarte estendera, atravez d'uma suave melancolia
outomnal, pelas veigas do Mondêgo...
Na pallidez da tarde, entre a folhagem Que o outomno amarellece...
Mas, como era então Junho e a lua crescia, Gonçalo determinou por fim
aproveitar as sensações de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a
aldeia--para levantar, logo á entrada da sua Novella, o negro e immenso
Paço de Santa Ireneia, no silencio d'uma noite d'Agosto, sob o
resplendor da lua cheia.
E já enchera desembaraçadamente, ajudado pelo *Bardo*, duas tiras,
quando uma desavença com o seu caseiro, o Manoel Relho, que
amanhava a quinta por oitocentos mil reis de renda, veio perturbar, na
fresca e noviça inspiração do seu trabalho, o Fidalgo da Torre. Desde o
Natal o Relho, que durante annos de compostura e ordem se
emborrachava sempre aos domingos com alegria e com pachorra,
começára a tomar, tres e quatro vezes por semana, bebedeiras
desabridas, escandalosas, em que espancava a mulher, atroava a quinta
de berros, e saltava para a estrada, esguedelhado, de varapáu,
desafiando a quieta aldeia. Por fim, uma noite em que Gonçalo, á banca,
depois do chá, laboriosamente escavava os fossos do Paço de Santa
Ireneia--de repente a Rosa cozinheira rompeu a gritar «Aqui d'El-rei
contra o Relho!» E, atravez dos seus brados e dos latidos dos cães, uma
pedra, depois outra, bateram na varanda veneravel da livraria! Enfiado,
Gonçalo Mendes Ramires pensou no revólver... Mas justamente n'essa
tarde o creado, o Bento, descêra aquella sua velha e unica arma á
cozinha para a desenferrujar e arear! Então, atarantado, correu ao
quarto, que fechou á chave, empurrando contra a porta a commoda com
tão desesperada anciedade que frascos de crystal, um cofre de tartaruga,
até um crucifixo, tombaram e se partiram. Depois gritos e latidos
findaram no pateo--mas Gonçalo não se arredou n'essa noite d'aquelle

refugio bem defendido, fumando cigarros, ruminando um furor
sentimental contra o Relho, a quem tanto perdoára, sempre tão
affavelmente tratára, e que apedrejava as vidraças da Torre! Cêdo, de
manhã convocou o Regedor; a Rosa, ainda tremula, mostrou no braço
as marcas roxas dos dedos do Relho; e o homem, cujo arrendamento
findava em Outubro, foi despedido da quinta com a mulher, a arca e o
catre. Immediatamente appareceu um lavrador dos Bravaes, o José
Casco, respeitado em toda a freguezia pela sua seriedade e força
espantosa, propondo ao fidalgo arrendar a Torre. Gonçalo Mendes
Ramires porém, já desde a morte do pae, decidira elevar a renda a
novecentos e cincoenta mil réis:--e o Casco desceu as escadas, de
cabeça descahida. Voltou logo ao outro dia, repercorreu miudamente
toda a quinta, esfarellou a terra entre os dedos, esquadrinhou o curral e
a adega, contou as oliveiras e as cêpas: e n'um esforço, em que lhe
arfaram todas as costellas, offereceu novecentos e dez mil réis!
Gonçalo não cedia, certo da sua equidade. O José Casco voltou ainda
com a mulher; depois, n'um domingo, com a mulher e um compadre,--e
era um coçar lento do queixo rapado, umas voltas desconfiadas em
torno da eira e da horta, umas demoras sumidas dentro da tulha, que
tornavam aquella manhã de Junho intoleravelmente longa ao Fidalgo,
sentado n'um banco de pedra do jardim, debaixo d'uma mimosa, com a
*Gazeta do Porto*. Quando o Casco, pallido, lhe veio offerecer
novecentos e trinta mil réis--Gonçalo Mendes Ramires arremessou o
jornal, declarou que ia elle, por sua conta,
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