o seu avoengo Tructesindo Ramires, Alferes-mór de
Sancho I.
Gonçalo, rindo, confessou que ainda não começára essa grande obra!
--Ah! murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros oculos sobre
elle, duros e desconsolados. Então você não persistio?... Não
permaneceu fiel á Idéa?...
Encolheu os hombros, resignadamente, já acostumado, atravez da sua
missão, a estes desfallecimentos do Patriotismo. Nem consentio que
Gonçalo, humilhado perante aquella Fé que se mantivera tão pura e
servidôra--alludisse, como desculpa, ao inventario laborioso da Casa,
depois da morte do papá...
--Bem, bem! Acabou! Proscratinare luzitanum est. Trabalha agora no
verão... Para Portuguezes, menino, o verão é o tempo das bellas
fortunas e dos rijos feitos. No verão nasce Nun'Alvares no Bomjardim!
No verão se vence em Aljubarrota! No verão chega o Gama á India!...
E no verão vae o nosso Gonçalo escrever uma novellasinha sublime!...
De resto os *Annaes* só apparecem em Dezembro, caracteristicamente
no Primeiro de Dezembro. E você em tres mezes resuscita um mundo.
Serio, Gonçalo Mendes!... É um dever, um santo dever, sobretudo para
os novos, collaborar nos *Annaes*. Portugal, menino, morre por falta
de sentimento nacional! Nós estamos immundamente morrendo do mal
de não ser Portuguezes!
Parou--ondeou o braço magro, como a correia d'um latego, n'um gesto
que açoutava o Rocio, a Cidade, toda a Nação. Sabia o amigo
Gonçalinho o segredo d'esta borracheira sinistra? É que, dos
Portuguezes, os peores despresavam a Patria--e os melhores ignoravam
a Patria. O remedio?... Revelar Portugal, vulgarisar Portugal. Sim,
amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo
que todos o conheçam--ao menos como se conhece o Xarope Peitoral
de James, hein? E que todos o adoptem--ao menos como se adoptou o
sabão do Congo, hein? E conhecido, adoptado, que todos o amem
emfim, nos seus heróes, nos seus feitos, mesmo nos seus defeitos, em
todos os seus padrões, e até nas veras pedrinhas das suas calçadas! Para
esse fim, o maior a emprehender n'este apagado seculo da nossa
Historia, fundava elle os *Annaes*. Para berrar! Para atroar Portugal,
aos bramidos sobre os telhados, com a noticia inesperada da sua
grandeza! E aos descendentes dos que outr'ora fizeram o Reino
incumbia, mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer... Como?
Reatando a tradição, caramba!
--Assim, vocês! Por essa historia de Portugal fóra, vocês são uma
enfiada de Ramires de toda a belleza. Mesmo o desembargador, o que
comeu n'uma ceia de Natal dois leitões!... É apenas uma barriga. Mas
que barriga! Ha n'ella uma pujança heroica que prova raça, a raça mais
forte do que promette a força humana, como diz Camões. Dois leitões,
caramba! Até enternece!... E os outros Ramires, o de Silves, o de
Aljubarrota, os de Arzilla, os da India! E os cinco valentes, de quem
você talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem, resuscitar
estes varões, e mostrar n'elles a alma façanhuda, o querer sublime que
nada verga, é uma soberba lição aos novos... Tonifica, caramba! Pela
consciencia que renova de termos sido tão grandes sacode este chocho
consentimento nosso em permanecermos pequenos! É o que eu chamo
reatar a tradição... E depois feito por você proprio, Ramires, que chic!
Caramba, que chic! É um fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que,
para mostrar a heroicidade da Patria, abre simplesmente, sem sahir do
seu solar, os archivos da sua Casa, velha de mais de mil annos. É de
rachar!... E você não precisa fazer um grosso romance... Nem um
romance muito desenvolvido está na indole militante da Revista. Basta
um conto, de vinte ou trinta paginas... Está claro, os *Annaes* por ora
não podem pagar. Tambem, você não precisa! E que diabo! não se trata
de pecunia, mas d'uma grande renovação social... E depois, menino, a
litteratura leva a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonçalo em Coimbra,
ultimamente, frequentava o Centro Regenerador. Pois, amigo, de
folhetim em folhetim, se chega a S. Bento! A penna agora, como a
espada outr'ora, edifica reinos... Pense você n'isto! E adeus! que ainda
hoje tenho de copiar, para lettra christã, este estudo do Henriques sobre
Ceylão... Você não conhece o Henriques?... Não conhece. Ninguem
conhece. Pois quando na Europa, n'essas grandes Academias da Europa,
ha uma duvida sobre a Historia ou a Litteratura cingaleza, gritam para
cá, para o Henriques!
Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomo--e Gonçalo ainda o avistou,
na porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o braço esguio
d'Apostolo deante d'um sujeito obeso, de vasto collete branco, que
recuava, com espanto, assim perturbado no quieto gozo do seu grosso
charuto e da doce noite de Maio.
O Fidalgo da Torre recolheu para o Bragança, impressionado,
ruminando a idéa do Patriota. Tudo n'ella o seduzia--e lhe convinha: a
sua collaboração n'uma Revista consideravel, de setenta paginas, em
companhia de Escriptores doutos, lentes das Escolas, antigos Ministros,
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