A Illustre Casa de Ramires | Page 4

José Maria Eça de Queiroz
um mundo. No acto d'esse anno
levou o R.
Quando regressou das ferias para o Quarto-Anno já não refervia na rua
da Mathematica o Cenaculo ardente dos Patriotas. O Castanheiro,
formado, vegetava em Villa Real de Santo Antonio: com elle
desapparecera a *Patria*: e os moços zelosos que na Bibliotheca
esquadrinhavam as Chronicas de Fernam Lopes e de Azurara,
desamparados por aquelle Apostolo que os levantava, recahiram nos
romances de Georges Ohnet e retomaram á noite o taco nos bilhares da
Sophia. Gonçalo voltava tambem mudado, de luto pelo pae que morrera
em Agosto, com a barba crescida, sempre affavel e suave, porém mais
grave, averso a ceias e a noites errantes. Tomou um quarto no Hotel
Mondego, onde o servia, de gravata branca, um velho creado de Santa

Ireneia, o Bento:--e os seus companheiros preferidos foram tres ou
quatro rapazes que se preparavam para a Politica, folheavam
attentamente o Diario das Camaras, conheciam alguns enredos da
Côrte, proclamavam a necessidade d'uma «Orientação positiva» e d'um
«largo fomento rural», consideravam como leviandade reles e jacobina
a irreverencia da Academia pelos Dogmas, e, mesmo passeando ao luar
no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam com ardor sobre os
dous Chefes de Partido--o Braz Victorino, o homem novo dos
Regeneradores, e o velho Barão de S. Fulgencio, chefe classico dos
Historicos. Inclinado para os Regeneradores, por que a Regeneração lhe
representava tradicionalmente idéas de conservantismo, de elegancia
culta e de generosidade, Gonçalo frequentou então o Centro
Regenerador da Couraça, onde aconselhava á noite, tomando chá preto,
«o fortalecimento da auctoridade da Corôa», e «uma forte expansão
colonial!» Depois, logo na Primavera, desmanchou alegremente esta
gravidade politica: e ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em
bacalhoadas festivas, entre o estridor das guitarras. Mas não alludio
mais ao seu grande Romance em dous volumes: e ou recuára ou se
esquecera da sua missão d'Arte Historica. Realmente só na Paschoa do
Quinto-Anno retomou a penna--para lançar, na *Gazeta do Porto*,
contra um seu patricio, o Dr. André Cavalleiro, que o Ministerio do S.
Fulgencio nomeára Governador civil de Oliveira, duas
correspondencias muito acerbas, d'um rancor intenso e pessoal, (a
ponto de chasquear «a feroz bigodeira negra de S. Ex.^a»). Assignara
Juvenal, como outr'ora o pae, quando publicava communicados
politicos d'Oliveira n'essa mesma *Gazeta do Porto*, jornal amigo,
onde um Villar Mendes, seu remoto parente, redigia a Revista
Estrangeira. Mas lêra aos amigos no Centro--«os dous botes decisivos
que atirariam o Sr. Cavalleiro abaixo do seu Cavallo!» E um d'esses
moços serios, sobrinho do Bispo de Oliveira, não disfarçou o seu
assombro:
--Oh Gonçalo, eu sempre pensei que você e o Cavalleiro eram intimos!
Se bem me lembro quando você chegou a Coimbra, para os
Preparatorios, viveu na casa do Cavalleiro, na rua de S. João... Pois não
ha uma amizade tradicional, quasi historica, entre Ramires e
Cavalleiros?... Eu pouco conheço Oliveira, nunca andei para os vossos

sitios; mas até creio que Corinde, a quinta do Cavalleiro, pega com
Santa Ireneia!
E Gonçalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar
seccamente que Corinde não pegava com Santa Ireneia: que entre as
duas terras corria muito justificadamente a ribeira do Coice: e que o Sr.
André Cavalleiro, e sobre tudo Cavallo, era um animal detestavel que
pastava na outra margem!--O sobrinho do Bispo saudou e exclamou:
--Sim senhor, boa piada!
Um anno depois da Formatura, Gonçalo foi a Lisboa por causa da
hypotheca da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo fôro
annual de dez réis e meia gallinha, devido ao Abbade de Praga, andava
empecendo terrivelmente nos Conselhos do Banco Hypothecario;--e
tambem para conhecer mais estreitamente o seu Chefe, o Braz
Victorino, mostrar lealdade e submissão partidaria, colher algum fino
conselho de conducta Politica. Ora uma noite, voltando de jantar em
casa da velha Marqueza de Louredo, a «tia Louredo», que morava a
Santa Clara, esbarrou no Rocio com José Lucio Castanheiro; então
empregado no Ministerio da Fazenda, na repartição dos Proprios
Nacionaes. Mais defecado, mais macilento, com uns oculos mais largos
e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo, como em Coimbra, na
chamma da sua Idéa--«a resurreição do sentimento portuguez!» E agora,
alargando a proporções condignas da Capital o plano da *Patria*,
labutava devoradoramente na creação d'uma Revista quinzenal de
setenta paginas, com capa azul, os *Annaes de Litteratura e de
Historia*. Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos
em torno das fontes seccas do Rocio, Castanheiro, que sobraçava um
rolo de papel e um gordo folio encadernado em bezerro, depois de
recordar as cavaqueiras geniaes da rua da Misericordia, de maldizer a
falta de intellectualidade de Villa Real de Santo Antonio--voltou
soffregamente á sua Idéa, e supplicou a Gonçalo Mendes Ramires que
lhe cedesse para os *Annaes* esse Romance que elle annunciára em
Coimbra, sobre
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