A Illustre Casa de Ramires | Page 3

José Maria Eça de Queiroz
a
quem Simão Craveiro chamava o «Castanheiro Patriotinheiro», fundára
um Semanario, a *Patria*--«com o alevantado intento (affirmava
sonoramente o Prospecto) de despertar, não só na mocidade Academica,
mas em todo o paiz, do cabo Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor
tão arrefecido das bellezas, das grandezas e das glorias de Portugal!»
Devorado por essa idéa, «a sua Idéa», sentindo n'ella uma carreira,
quasi uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de
Apostolo, clamava pelos botequins da Sophia, pelos claustros da
Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos
cigarros,--«a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar,
caramba, Portugal da alluvião do estrangeirismo!»--Como o Semanario
appareceu regularmente durante tres Domingos, e publicou realmente
estudos recheiados de griphos e citações sobre as Capellas da Batalha,
a Tomada d'Ormuz, a Embaixada de Tristão da Cunha, começou logo a
ser considerado uma aurora, ainda pallida mas segura, de Renascimento
Nacional. E alguns bons espiritos da Academia, sobretudo os
companheiros de casa do Castanheiro, os tres que se occupavam das
cousas do saber e da intelligencia (porque dos tres restantes um era
homem de cacete e forças, o outro guitarrista, e o outro «premiado»),

passaram, aquecidos por aquella chamma patriotica, a esquadrinhar na
Bibliotheca, nos grossos tomos nunca d'antes visitados de Fernam
Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara, proezas e lendas--«só portuguezas,
só nossas (como supplicava o Castanheiro), que refizessem á nação
abatida uma consciencia da sua heroicidade!» Assim crescia o
Cenaculo Patriotico da casa das Severinas. E foi então que Gonçalo
Mendes Ramires, moço muito affavel, esvelto e loiro, d'uma brancura
sã de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos
sapatos--apresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do almoço,
onze tiras de papel intituladas D. Guiomar. N'ellas se contava a
velhissima historia da castellã, que, emquanto longe nas guerras do
Ultra-mar o castellão barbudo e cingido de ferro atira a acha-d'armas ás
portas de Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os braços nús, por
noite de Maio e de lua, o pagem de annellados cabellos... Depois ruge o
inverno, o castellão volta, mais barbudo, com um bordão de romeiro.
Pelo villico do Castello, homem espreitador e de amargos sorrisos,
conhece a traição, a macula no seu nome tão puro, honrado em todas as
Hespanhas! E ai do pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados.
Já no patim da Alcaçova o verdugo, de capuz escarlate, espera,
encostado ao machado, entre dous cepos cobertos de pannos de dó... E
no final choroso da D. Guiomar, como em todas essas historias do
Romanceiro d'Amor, tambem brotavam rente ás duas sepulturas,
escavadas no êrmo, duas roseiras brancas a que o vento enlaçava os
aromas e as rosas. De sorte que (como notou José Lucio Castanheiro,
coçando pensativamente o queixo) não resaltava n'esta D. Guiomar
nada que fosse «só portuguez, só nosso, abrolhando do sólo e da raça!»
Mas esses amores lamentosos passavam n'um solar de Riba-Côa: os
nomes dos cavalleiros, Remarigues, Ordonho, Froylas, Gutierres,
tinham um delicioso sabor godo: em cada tira resoavam bravamente os
genuinos: «Bofé!... Mentes pela gorja!... Pagem, o meu murzello!...»: e
através de toda esta vernaculidade circulava uma sufficiente turba de
cavallariços com saios alvadios, beguinos sumidos na sombra das
cugulas, ovençaes sopezando fartas bolsas de couro, uchões
espostejando nedios lombos de cêrdo... A Novella portanto marcava um
salutar retrocesso ao sentimento nacional.

--E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonçalinho
surde com um estylo terso, masculo, de boa côr archaica... D'optima côr
archaica! Lembra até o Bobo, o Monge de Cister!... A Guiomar,
realmente, é uma castellã vaga, da Bretanha ou da Aquitania. Mas no
villico, mesmo no castellão, já transparecem portuguezes, bons
portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e Cavado... Sim senhor!
Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas
chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o torrão,
sente bem a raça!
D. Guiomar encheu tres paginas da *Patria*. N'esse Domingo, para
celebrar a sua entrada na Litteratura, Gonçalo Mendes Ramires pagou
aos camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma ceia--onde foi
acclamado, logo depois do frango com ervilhas, quando os moços do
Camolino, esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como «o
nosso Walter Scott!» Elle, de resto, annunciára já com simplicidade um
Romance em dois volumes, fundado nos annaes da sua Casa, n'um rude
feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e
Alferes-mór de D. Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber
especial de trajes e alfaias que revelára na D. Guiomar, até pela
antiguidade da sua linhagem, Gonçalinho parecia gloriosamente votado
a restaurar em Portugal o Romance Historico. Possuia uma missão--e
começou logo a passear pela Calçada, pensativo, com o gorro sobre os
olhos, como quem anda reconstruindo
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 134
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.