A Illustre Casa de Ramires | Page 2

José Maria Eça de Queiroz
o
Cortador, collaço de Affonso Henriques (com quem na mesma noite,
para receber a pranchada de cavalleiro, vellára as armas na Sé de
Zamora), apparece logo na batalha d'Ourique, onde tambem avista
Jesus-Christo sobre finas nuvens d'ouro, pregado n'uma cruz de dez
covados. No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire de San-Thiago,
arromba a golpes de acha um postigo da Couraça, rompe por entre as
cimitarras que lhe decepam as duas mãos, e surde na quadrella da torre
albarran, com os dous pulsos a esguichar sangue, bradando alegremente
ao Mestre:--«D. Payo Peres, Tavira é nossa! Real, Real por Portugal!»
O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a levadiça erguida,
as barbacans erriçadas de frecheiros, nega acolhida a El-Rei D.
Fernando e Leonor Telles que corriam o Norte em folgares e
caçadas--para que a presença da adultera não macule a pureza extreme
do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o Trovador desbarata um
troço de bésteiros, mata o Adiantado-mór de Galliza, e por elle, não por
outro, cahe derribado o pendão real de Castella, em que ao fim da lide
seu irmão d'armas, D. Antão d'Almada, se embrulhou para o levar,
dançando e cantando, ao Mestre d'Aviz. Sob os muros d'Arzilla
combatem magnificamente dois Ramires, o edoso Sueiro e seu neto

Fernão, e deante do cadaver do velho, trespassado por quatro virotes,
estirado no pateo da Alcaçova ao lado do corpo do Conde de
Marialva--Affonso V arma juntamente cavalleiros o Principe seu filho e
Fernão Ramires, murmurando entre lagrimas: «Deus vos queira tão
bons como esses que ahi jazem!...» Mas eis que Portugal se faz aos
mares! E raras são então as armadas e os combates de Oriente em que
se não esforce um Ramires--ficando na lenda tragico-maritima aquelle
nobre capitão do Golpho Persico, Balthazar Ramires, que, no naufragio
da Santa Barbara, reveste a sua pesada armadura, e no castello de prôa,
hirto, se afunda em silencio com a náu que se afunda, encostado á sua
grande espada. Em Alcacer-Kebir, onde dous Ramires sempre ao lado
d'El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pagem
do Guião, nem lezo nem ferido, mas não querendo mais vida pois que
El-Rei não vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha d'armas, e
gritando:--«Vai-te, alma, que já tardas, servir a de teu senhor!»--entra
na chusma mourisca e para sempre desapparece. Sob os Philippes, os
Ramires, amuados, bebem e caçam nas suas terras. Reapparecendo com
os Braganças, um Ramires, Vicente, Governador das Armas
d'Entre-Douro e Minho por D. João IV, mette a Castella, destroça os
Hespanhoes do Conde, de Venavente, e toma Fuente-Guiñal, a cujo
furioso saque preside da varanda d'um Convento de Franciscanos, em
mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. Já, porém, como a
nação, degenera a nobre raça... Alvaro Ramires, valido de D. Pedro II,
brigão façanhudo, atordôa Lisboa com arruaças, furta a mulher d'um
Védor da Fazenda que mandára matar a pauladas por pretos, incendeia
em Sevilha depois de perder cem dobrões uma casa de tavolagem, e
termina por commandar uma urca de piratas na frota de Murad o
Maltrapilho. No reinado do Sr. D. João V Nuno Ramires brilha na
Côrte, ferra as suas mulas de prata, e arruina a casa celebrando
sumptuosas festes de Egreja, em que canta no côro vestido com o
habito de Irmão Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Christovam,
Presidente da Mesa de Consciencia e Ordem, alcovita os amores
d'el-rei D. José I com a filha do prior de Sacavem. Pedro Ramires,
Provedor e Feitor-mór das Alfandegas, ganha fama em todo o Reino
pela sua obesidade, a sua chalaça, as suas proezas de glutão no Paço da
Bemposta com o arcebispo de Thessalonica. Ignacio Ramires
acompanha D. João VI ao Brazil como Reposteiro-Mór, negoceia em

negros, volta com um bahú carregado de peças d'ouro que lhe rouba um
administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da
cornada de um boi. O avô de Gonçalo, Damião, doutor liberal dado ás
Musas, desembarca com D. Pedro no Mindello, compõe as empoladas
proclamações do Partido, funda um jornal, o Anti-Frade, e depois das
Guerras Civis arrasta uma existencia rheumatica em Santa Ireneia,
embrulhado no seu capotão de briche, traduzindo para vernaculo, com
um lexicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius Flaccus. O
pae de Gonçalo, ora Regenerador, ora Historico, vivia em Lisboa no
Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco
Hypothecario e pelo lagedo da Arcada, até que um Ministro do Reino,
cuja concubina, corista de S. Carlos, elle fascinára, o nomeou, (para o
afastar da Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonçalo, esse, era
bacharel formado com um R no terceiro anno.
E n'esse anno justamente se estreou nas Lettras Gonçalo Mendes
Ramires. Um seu companheiro de casa, José Lucio Castanheiro,
algarvio muito magro, muito macilento, de enormes oculos azues,
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