A Gratidão | Page 8

Camilo Castelo Branco
ás duas
senhoras cadeiras para se sentarem e offereceu-lhes um copinho de leite
fresco e morno.
D. Julia, a quem o caminho tinha fatigado, aceitou o offerecimento.
Rosa trouxe então uma toalha de linho, alvo como neve, que estendeu
sobre uma mesa, na qual collocou o melhor pão, que havia em casa,
manteiga e um copo de leite.
D. Julia, com uma alegria infantil, aceitou este lunch frugal, e,
reanimadas com elle as suas forças, pediu para visitar a quinta.
A avó de Rosa estava sentada no jardim, debaixo d'um caramanchel de
clematites, fiando, e cantando com voz tremula o estribilho d'um

romance antigo. N'esta boa velha, bem vestida e de boa presença,
ninguem seria capaz de reconhecer a pobre cega, que dezoito mezes
antes, quasi morrendo de fome e frio, e podendo apenas suster-se em pé,
encontramos seguindo o caminho da serra de Vallongo para S. Cosme.
A viscondessa do Candal e sua filha saudaram a pobre cega, e esta,
prevenida pela netinha, correspondeu-lhe respeitosamente.
--Não vos incommodeis, boa mulher---lhe disse a
viscondessa--permitti-nos sómente que conversemos por um instante
convosco.
--É muita honra para mim, minha querida senhora;--respondeu a
cega--estou portanto ás vossas ordens.
--Visto isso não vos recusareis a dizer-me se estaes satisfeita com a
vossa neta?
--Se estou contente com a minha Rosinha?!--exclamou a cega---com
ella, que é a minha benção sobre a terra. Quando o meu genro morreu,
por causa d'uma ferida, que fez em uma perna com o seu machado,
porque elle era rachador de lenha na serra, e a quem minha filha, mãi
de Rosa, seguiu passado pouco tempo, quasi que enlouqueci, porque
não sabia o que havia de fazer. Rosa, disse-me com a sua voz meiga e
humilde: avósinha, eu conheço uma senhora muito caritativa; vamos a
sua casa, que estou certa nos ha-de recolher. E foi verdade.
A snr.^a D. Thereza, essa boa e caritativa senhora, para quem peço a
Deus todos os beneficios e bençãos, teve a caridade de recolher em sua
casa uma velha enferma e inutil como eu. Mas isto devo-o a Rosinha,
porque ella sabe dizer as cousas de tal maneira, que, penetrando até o
coração, commovem e decidem á compaixão. Vai em dezoito mezes
que aqui nos achamos. Fio um pouco para não estar em descanço; mas
Rosinha, senhora, Rosinha, cantando sempre, trabalha desde pela
manhã até á noite. Em quanto que dura o verão, occupa-se a colher
flôres na serra e no campo, e a fazer cestinhos com ellas; mas isto não
obsta a que, quando se recolhe, lave a roupa, limpe os moveis, e ajude a
cozinhar, e se quizesse dizer-vos tudo o que ella faz, ou sabe fazer,

levar-me-ia muito tempo.
Assim, amo muito a minha querida Rosinha. Mas onde estás tu, que te
não chegas a mim para te dar um abraço?
Rosa, com o pretexto de ir colher um ramo para D. Julia, tinha-se
retirado, quando a avó começára a elogial-a.
A viscondessa e sua filha ouviram com prazer o panegyrico de Rosa,
feito pela avó, e iam fazer novas perguntas, quando D. Thereza chegou.
Depois de terminados os comprimentos preliminares, a viscondessa
expoz a D. Thereza como sua filha sympathisára com Rosa, e estava
resolvida a tomal-a sob a sua protecção, se D. Thereza a isso se não
oppozesse.
--Primeiro que tudo--respondeu D. Thereza--desejo a felicidade e
venturas de Rosinha, ainda que me ha-de custar muito a separar-me
d'ella: porém, se fôr sua vontade, não me opponho, por que julgo lhe
procuraes a sua felicidade; mas ponho por condição, que lhe não
prohibireis vir algumas vezes visitar-me.
--Isso, senhora, é um dever sagrado, que Rosa tem a cumprir. Vamos
porém interrogal-a, por que ella nada sabe do que acabamos de fallar.
D. Thereza chamou a pequena, que veio correndo, e disse-lhe:
--Rosinha, queres ir viver com esta senhora e sua filha?
--Pois vós, senhora--respondeu Rosa tremula e timida--quereis
mandar-me embora?
--Não. Pergunto sómente se me queres deixar, para te tornares uma
menina da cidade, instruida e de maneiras polidas?
--Não, minha senhora. Nunca--disse Rosa chorando, lançando-se nos
braços da sua bemfeitora--nunca vos deixarei. Tenho muitos e muitos
desejos de me instruir e de aprender, mas, se para isso é necessario o
deixar-vos, antes quero ficar ignorante toda a minha vida.

Recolheste-nos, senhora, quando eu e a minha querida avósinha,
estavamos quasi a morrer de fome, e havia de ser tão ingrata, que,
quando principio a servir d'alguma utilidade, vos abandonasse? Não,
senhora, nunca, nunca vos deixarei.
--Ouvistel-a, minhas senhoras--disse D. Thereza enxugando os olhos,
razos de lagrimas.
--Pelo que vejo, Rosa, estás bem decidida a não vir comnosco?--lhe
disse a viscondessa.
--Seria feliz e muito feliz, minha senhora, se podesse ir viver na sua
companhia, e de sua estimavel filha; mas antes de vós, está a snr.^a D.
Thereza, que salvou a minha pobre
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 22
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.