A Gratidão | Page 7

Camilo Castelo Branco
digna da protecção, que se lhe dispensar.
--O que mais me admira e me espanta, Julia, é a rapidez com que
sympathisas com qualquer, e como instantaneamente conheces e
decides, que essa pessoa é digna da tua affeição e amisade... Não quero
tomar-te o tempo; julgo que vinhas buscar o teu lindo cestinho, não é
assim?
--Vinha, sim, para o ir copiar em um quadro, pintando-o.
--Pintal-o?!--disse D. Bertha, dando uma grande gargalhada.--Que
liguemos alguma attenção ás flôres dos nossos parques e jardins,
concedo; mas que empreguemos o tempo e o talento com as silvestres,
que só tem os perfumes para si, parece-me uma singularidade esquisita.

--A minha opinião, Bertha, é exactamente o contrario. Mas isso não
admira, por que nós raras vezes estamos accordes sobre qualquer
materia. Ponhamos isso de parte; queres tu vir ámanhã, commigo e com
a nossa boa mãi, vêr Rosa?
--Não posso. Combinei com a Francisquinha e Ritinha Meirelles virem
amanhã aqui passar o dia. Além d'isso, fallar-te-hei francamente, não
ha nada para mim mais antipathico do que todas essas lavradeiras; e
andar uma legua para me ir achar face a face com um monstrosinho,
parece-me um tanto aborrecivel.
--Rosa é muito linda e interessante.
--Para ti, Julia, todas as lavradeiras são lindas e interessantes. Para mim
todas são feias, e broncas. O calor principia a incommodar-me--disse D.
Bertha, sentando-se indolentemente sobre um sophá.--Vai, Julia, vai
pintar o teu lindo cestinho, que eu vou sonhar com o meu Porto, para
onde espero ir muito breve.
Estas ultimas palavras já mal se perceberam, porque foram
acompanhadas com um bocejo, e D. Bertha cerrou os olhos.
D. Julia lançou sobre sua irmã um olhar de compaixão e sahiu.
Alguns instantes depois deu principio ao quadro.
VII.
No dia seguinte Rosa sahiu para a serra, muito cêdo, para adiantar o seu
trabalho, e poder assim dedicar mais tempo á joven senhora, que tão
amavel e generosa tinha sido com ella.
Trabalhou com tal desembaraço, que, muito antes da hora marcada por
D. Julia, tinha terminado o seu serviço.
Aproveitou portanto o tempo entregando-se á leitura d'algumas paginas
d'um livro, de que lhe tinham feito presente no dia anterior. Lia com
attenção, e, quando encontrava algum trecho rico e bello, parava, para

exprimir a sua alegria e enthusiasmo.
Estava Rosa de tal sorte entregue á leitura, que não presentiu a chegada
da viscondessa e de sua filha D. Julia.
--Que livro estás lendo, com tanta attenção, minha menina--lhe disse a
viscondessa.
Rosa saudou-a, apresentou-lhe o livro e respondeu:
--São as Meditações religiosas de Rodrigues de Bastos.
--E encontras grande prazer na sua leitura?
--Se encontro, minha senhora. Quando estou sentada á borda d'um
regato, ou debaixo d'um carvalho annoso, lendo n'este livro, parece que
a minha alma se despe de todos os seus envolucros terrenos e
mundanos, e se põe em contacto com Deus, author de todas estas
maravilhas da natureza, que nos cercam, e a quem no fundo do meu
coração adoro e venero.
A viscondessa e sua filha, admiradas do que ouviam a uma pequena do
campo, trocaram entre si um olhar d'intelligencia.
--E que mais costumas lêr?--perguntou D. Julia.
--Não tenho muitos livros. Além d'este possuo um cathecismo, uma
vida de santos, de que leio uma pagina cada domingo, e mais uns
livrinhos d'historias bonitas. Esquecia-me dizer-vos, que tambem tenho
um livro de geographia, que me deu o mestre escóla da minha freguezia,
mas que não leio, por que tem muitas palavras, que não entendo.
--Pelo que me dizes conheço que tens desejos de te instruires. Se te
proporcionassem os meios de o fazeres, serias feliz?
--Seria, sim, minha senhora; mas infelizmente isso é impossivel, porque,
para ir todos os dias á mestra, é preciso ser muito rica.
--Mas se te mandassem á mestra?--insistiu D. Julia.

--Seria muito feliz, mas nem quero pensar n'isso.
--Pelo contrario; eu e minha mãi, viemos procurar-te para que nos
conduzisses a casa da snr.^a D. Thereza, e, se a tua protectora estiver
satisfeita comtigo, pedir-lhe-hemos para te deixar ir todos os dias á
mestra. Então não respondes?
--Perdoai-me, senhora. Estou muito contente e alegre, e queria
agradecer-vos, mas não posso. Que fiz eu para merecer tantos
beneficios?
--Mostraste-te reconhecida aos beneficios da snr.^a D. Thereza, e isso
indica um bom coração; és trabalhadeira e tens desejos de te instruires;
mereces portanto que nos interessemos por ti--lhe disse a
viscondessa.--Vamos, ensina-nos o caminho para a quinta da snr.^a D.
Thereza.
Rosa, commovida, dirigiu-se para a quinta com a viscondessa e sua
filha. Pelo caminho respondeu modestamente, e com graça, a todas as
perguntas, que lhe fizeram, e cada uma das respostas confirmou mais,
as duas senhoras, no bom conceito, que tinham formado de Rosa.
Quando chegaram á quinta, D. Thereza não estava em casa, mas não
devia tardar muito, por isso esperaram. Rosa apresentou
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