A Fome de Camões | Page 8

António Gomes Leal
já vi rollar funesta e bella
nas faces de dous entes
bem amados,
0. que é que ella nos diz? que nos revella de profundos desejos
decepados, d'inauditas ou intimas desgraças, que são as flores
funebres das Raças?!
O que é que ella nos diz, que nos remove
até ao mais profundo das
entranhas,
triste como flor onde não chove,
no cume inacessivel das
montanhas?!
Dirá ella um desejo que já houve,
cheio de dôr e
aspirações extranhas,
e expirou e morreu n'um mundo falso
como
um amor ao pé d'um cadafalso!?...
Quando a Fome colheu do moribundo
a lagrima de marmore dorida,

poz-se logo a caminho pelo mundo
e foi vendel-a aos Principes da
Vida.
Mas alguns, num desdem fino e profundo,
riram da triste
offerta nunca ouvida:
outros tiveram um horror absorto
ao verem
uma lagrima d'um morto!
Lembrou-se então d'um Principe potente
que vive n'um payz todo de
gelo,
que ama tudo que é gélido, inclemente,
e frio como a folha
d'um cutello.
Penetrou no palacio refulgente,
todo cheio de
marmore e ouro bello,
e onde elle desvellava insomnias cruas
no
meio de milhões d'espadas nuas.
Quando o Cesar cruel viu esse pranto
de que gostou seu genio
monstruoso
á Sombra disse--Acho um secreto encanta
n'este gélido
objecto curioso!...
Deixa-a ficar que causará espanto
ao meu povo
selvagem tenebroso,
e assim lhe ensine n'um terror mortal
como é
que gela a lagrima final!

Porém da noute no silencio frio
quando o Cesar dormia no seu leito

esta lagrima ao Principe sombrio
infundia-lhe um tragico respeito.

Das visões no terrivel desvario
via da Morte o ultimo tregeito:
e as
caveiras sem olhos, nem narises,
de todos os sinistros infelizes!
E a lagrima implacavel e severa
accusava-o de todos os seus crimes

dos seus instinctos tragicos de fera,
dos mortaes que dobrava como
vimes,
dos irmãos e dos Paes que elle prendêra,
e das almas viris,
fortes, sublimes,
a quem seu braço sem cessar enterra
pelas
entranhas humidas da terra!
E o Despota na lagrima parada
lia a lenda de todos que sem nome

sobre a neve, ou na mina bronzeada
tinham morrido esqualidos de
fome:
via os prantos da plebe esfarrapada
que n'um suor esteril se
consome:
e os clamores formidaveis, justiceiros,
dos prantos de
milhões de mineiros!...
Fugiu logo do leito insupportavel,
e por todo o palacio vaga errante.

De manhã chama a Sombra miseravel
e entrega-lh'a, com mão
febrecitante:
Leva d'aqui--lhe grita--esse implacavel
tormento, que
é mais frio que um brilhante,
porque de prantos tenho um cemiterio

no gelo excepcional do meu imperio!
Lembrou-lhe então á Fome ir offertal-o
de Roma ao mais sinistro
inquisidor.
Deixa á porta o seu pallido cavallo.
Penetra cheia d'um
mortal terror.
Quando o sicario a viu sentiu abalo
e disse á
Fome--Eu gosto d'esta flor
que florece nos mortos, como lyrios
que
gelaram nos olhos dos martyrios!
Porem da noute no silencio enorme,
a fixidez da lagrima impassivel

olhava-o como um olho frio e informe,
e accusava-o de tudo que
ha de incrivel,
Accusava-lhe a alma, antro desforme;
e estendia-lhe
então n'um sonho horrivel

de eternos prantos um gelado mar

--como uma immovel solidão polar.

E ao bandido lembravam-lhe as torturas
dos que vira morrer nos seus
flagicios,
de todas as sinistras creaturas
a quem passara a esponja
dos supplicios.
E as disformes e energicas figuras,
com blasphemias,
gritavam-lhe os seus vicios,
e entre injurias, mostravam, justiceiras

os braços calcinados das fogueiras.
Envia de manhã chamar a Fome,
e á Sombra grita com sorriso duro,

podes levar a lagrima sem nome,
e esconde-a bem no antro mais
obscuro.
Como uma pedra que o abysmo some
faze que ella se
suma; e no futuro
não me tragas jamais estes espelhos
dos que
morreram contra os Evangelhos!
Quando a Fome largou os dous sicarios
foi procurar o rei dos mais
banqueiros,
que era tambem senhor dos usurarios,
cujos navios
eram aos milheiros.
O palacio valia os mil erarios
dos principes
mais ricos estrangeiros.
E as suas sallas tinham cem figuras
das
mais raras e nuas esculpturas.
Quando o banqueiro viu a extranha offerta
disse n'um tom ironico e
orgulhoso,
«A vida d'um poeta é pobre e incerta!
Mais mesquinho o
seu pranto angustioso!
Comtudo, como a fome vil te aperta,

guardarei este pranto curioso,
e na alcova a porei, como memoria
de
que vai tudo Ouro, e nada a Gloria!
Porem, de noute no silencio fundo,
a lagrima impassivel fixa, dura,

recordava-lhe os prantos que no mundo
fizera derramar a sua usura.

E n'um estar immovel e profundo,
como um espectro d'uma sina
escura,
todos choravam, n'este pesadello,
--inconsolaveis lagrimas
de gelo!
Levantou-se o banqueiro torturado
e mal a aurora avermelhou a terra,

chamou a Fome, e livido, aterrado,
disse á Sombra--«Confessa-me
o que encerra
esse impassivel pranto amargurado

que não sei o que
tem me gela e aterra,
tendo eu só n'estas salas cem figuras
das mais
ricas marmoreas esculpturas?»

«Não sei--a Sombra disse:--Teem-me dito
0. mesmo, muitos grandes assassinos. É que esse pranto foi talvez o
grito do Genio contra o injusto dos destinos. É que o Genio é o
açoute do Infinito contra os crimes, e os grandes desatinos, e
mesmo sob os goivos mortuarios regela ainda as almas dos
sicarios!
Depois d'isto ninguem mais quiz o pranto!
Todos riam do extranho
d'essa offerta.
Uns fugiam da Fome com espanto.
Outros
julgavam-lhe a razão incerta.
Uma virgem, porem, d'um rosto santo

bradou, a face de rubor coberta:
--Eu amei d'um poeta a fronte amada!

Ai! quem déra essa lagrima gelada!
«Porem nada
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