A Fome de Camões | Page 9

António Gomes Leal
te dou, por que sou pobre,
a ti que és pobre como eu sou
tambem.
Sobe acima do azul que a todos cobre,
acima dos
Despresos, do Desdem.
Sobe acima da Dôr que é grande e nobre,

mais acima dos astros, mais além
do Egoismo, da Inveja, e da Cubiça,

e vai leval-a ao throno da Justiça!
Então a Sombra abandonou o mundo,
e ergueu-se logo acima das
espheras,
longe da Besta d'Ouro e Vicio immundo,
para longe dos
Tempos e das Eras,
perto do abysmo do insondavel fundo,
onde
teem corpo as lucidas chimeras:
montada n'um cavallo horrendo e
feio,
sem estribos, sem redeas, e sem freio.
Quando ella contemplou em baixo a terra,
humillimo planeta grão
d'areia
preza do Tempo e insaciavel Guerra
e onde a raça dos
mortaes ondeia,
ella que nada já commove e aterra,
que nenhum
pranto d'um estranho anceia,
sentiu brotar no secco coração
a rubra
e extranha flor da Indignação.
Ella atravez passara d'almas, vidas,
e dos martyres lugubres descalços,

das jovens mães crueis infanticidas,
das illusões e dos sorrisos
falsos,
atravez das eternas despedidas,
dos crimes, dos incestos,
cadafalsos,
e de todos os crimes e desgraças
que são os fructos

tragicos das Raças.
Ella atravez passara d'essas almas
aonde em prantos s'escreveu
_jámais_,
das grandes solidões das neves calmas,
atravez das galés,
dos hospitaes,
atravez das blasphemias e dos ais,
das glorias, dos
triumphos, e das palmas,
e atravez sempre! sempre! do gemido
do
Genio eternamente perseguido.
Por isso quando foi perto do throno
da terrivel Justiça, da Immutavel,

ia ainda indignada do abandono
em que se afunda o Genio
inconsolavel.
Como os nordestes varrem pelo outomno
as roseiras,
assim ella implacavel,
tinha varrido toda a piedade
contra a dura e
egoista Humanidade.
Mal a viu a Justiça disse--ó Fome
0. que é que trazes da sombria Terra? Trazes um ai do que morreu sem
nome? Sonho de virgem que teu braço enterra? Trazes um riso
que o infeliz consomme? Ultimo beijo em que um amor s'encerra?
Trazes um grito, um desalento fundo? Trazes um pranto de que
riu o mundo?
Trago mais que isso replicou sombria
a magra Fome, apresentando o
pranto:
--Eu trago-te esta lagrima tão fria
como o gume da Espada
justo e santo.
Eu trago-te este pranto d'agonia,
e que a ti mesmo
causará espanto,
pranto que gelou como uma esperança,
pranto que
clama um grito de vingança!
A Fome então narrou, succintamente,
a historia da lagrima marmorea.

Narrou toda essa vida descontente,
toda essa tragedia tão sem
gloria;
seu genio, seu destino, e febre ardente
do Bello, e de
gravar-se na memoria,
e esse pranto tão triste e tão profundo,
que só
o quiz uma mulher no mundo!
Ao acabar ergueu-se ferozmente
a Justiça em seu throno, commovida,

e clamou com um brado omnipotente
tal que as origens abalou da

Vida:
«--Eu juro pelo sangue do innocente,
por mim, por esta
lagrima caida,
pelo Ceu, pela Dôr, e pelo Espaço,
por minha espada,
e força de meu braço;
por tudo que ha de justo e de terrivel,
por tudo que ha de santo e
d'implacavel,
pelo pranto que cae no Invisivel,
e o soluço que rolla
no insondavel,
que não destruo ó mundo, ó insensivel,
planeta! essa
vida miseravel,
por ter havido uma mulher que quiz
um desolado
pranto d'infeliz!
«Mas já que o não quizeste ó Terra fria,
quero-o eu, de continuo, na
presença!
Quero tel-o de noute, quer de dia,
como um sonho
constante em que se pensa!
Quero ter esta lagrima sombria,
para um
dia lavrar tua sentença!
Quero tel-o ante mim, como lembrança:

para lembrar-me de que sou Vingança!
«Quero tel-o ante mim, ah! como um grito,
que me recorde os tristes
que sem nome
hão estendido os braços no Infinito,
na sêde de
Justiça que os consome!
Quero tel-o ante mim, como o afflicto

brado do Genio que morreu á fome,
e que vos prove d'esta espada os
brilhos,
de que vós, ó Poetas, sois meus filhos!»
Assim disse a Justiça. E desde então
ante ella jaz o pranto
eternamente,
para provar que se não verte em vão
a lagrima, na
terra, do innocente:
que a natureza é mãe, e o Genio irmão
do
espirito dos astros refulgente
e que a Justiça sopra a sua ira
nas
cordas vingadoras d'uma Lyra.
Eu não sei se entendestes o sentido
Occulto e justo d'esta allegoria,

se fiz ondular bem a vosso ouvido
os tenebrosos sons d'esta agonia?

E vós, ó tristes! tristes! que haveis ido
tranzidos repousar na valla
fria,
esquecidos, inglorios, sem um pranto
a lagrima acceitai d'este
meu canto!
Acceitai este canto, como preito
craneos de lava que não orna o louro!


e emfim morrestes, porque o vosso peito
bateu nas pedras, d'entre
as nuvens d'ouro.
Acceitai n'esta lagrima o respeito,
vós que
encontrastes só riso e desdouro!
e que em vez do festim do que
trabalha,
não tivestes nem louros, nem mortalha!
Acceitai n'esta lagrima o protesto
de muitas gerações de rebellados

contra o abandono insolito e funesto
do mundo silencioso aos vossos
brados!
Em vez do riso, insulto, e do doesto,
acceitai nossos
pezames irados,
e n'este canto, ó mortas existencias!
os protestos de
muitas Consciencias!
E tu, ó mundo, aprende-o! D'ora avante
não mates mais o Genio que
irradia!
Não s'ergam nunca mais ao ceu distante,
Contra ti, magros
braços d'agonia!
Por que hoje, sabe-o bem! fixa e brilhante,
está
clamando e bradando noute e dia,
acima d'Odios, Prantos, e Cubiça,

a lagrima marmorea ante a Justiça.
FIM.
End of
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