A Fome de Camões | Page 7

António Gomes Leal
tristes
corações despedaçados.
E as palavras sentidas, violentas
do plebeu calavam pelos peitos,
e
sentiam-se ouvir como os tormentos
dos grandes corações santos
desfeitos.
Parecia-se sentir as suarentas
e desvelladas noutes sobre
os leitos
diamantes separados, solitarios,
mais gelados que os leitos
funerarios!

Desenhou-o depois triste e exilado,
por todo o mundo errante
peregrino,
vagando como heroe, como soldado,
açoutado do vento
do Destino:
e o seu rude pezar fundo e divino
da grande viuvez do
ente amado,
pondo-o nas rochas tragico e proscripto,
de braços
levantados ao Infinito.
E todos escutavam, surprehendidos,
essas desgraças barbaras sepultas

no mysterio do olvido, e esses gemidos
e essas sagradas lastimas
inultas.
Barões e cavalleiros commovidos
enxugavam as lagrimas a
occultas,
e as pallidas senhoras soluçantes
alagavam com prantos os
brilhantes.
Depois pintou o horror da tempestade
e o assobio dos ventos nas
procellas,
dos naufragios a lugubre verdade,
um navio sem mastros
e sem vellas.
E o Genio do mar na immensidade,
á fria claridade
das estrellas,
entre as ondas, os ventos, os espantos,
salvando o
grande o livro dos seus cantos.
Depois mostrou-o pallido, quebrado,
no fundo d'uma lugubre enxovia,

no declinar da vida, envergonhado,
preso pela Injustiça, e Cobardia.

Pintou ao fundo tragico e assentado,
na misera masmorra humida e
fria,
0. Desespero torvo e macilento, irmão magro e infernal do Desalento.
E do plebeu nas phrases singulares
sentia-se o glacial dos luares frios,

os rugidos dos ventos pelos mares,
. desfazer das taboas dos navios: as fundas despedidas, e os pesares dos
adeuses nos carceres sombrios, e um vento a soluçar como um
açoite do Destino, rasgando a eterna noite.
E todos escutavam, surprehendidos,
essas desgraças barbaras sepultas

nos mysterios do olvido, esses gemidos
e essas sagradas lastimas
inultas!
Barões e cavalleiros commovidos
enxugavam as lagrimas a
occultas,
e as pallidas senhoras soluçantes
banhavam com seus
prantos os brilhantes.

Depois contou as noutes innarraveis
da Miseria, e da Neve as
ladainhas,
sobre os gelos os grandes miseraveis,
em attitudes
tragicas, mesquinhas.
Desenhou os carvalhos formidaveis
em
lugubres lençoes, as andorinhas
fugidas, procurando outros paizes.

E sempre! sempre a Fome! e os Infelizes!
Depois narrou a rude lucta immensa
com todas as potencias da
Desgraça,
e o Genio atravessando a névoa densa,
como um espectro
livido que passa:
as lagrimas da Fome e da Doença,
e o mendigar
do escravo sobre a praça,
pedindo supplicante á turba e ao mundo

esmola para um Genio moribundo.
Pintou a morte d'esse escravo amigo,
e o Genio inda mais triste e no
abandono
da força d'esse servo, seu abrigo,
dos amigos, dos nobres,
e do throno.
E o terrivel guerreiro do inimigo
pintou em noutes
lividas, sem somno,
velho, dobrado, pelas névoas cruas,
faminto á
chuva, e ao vento, pelas ruas.
Pintou depois, chorando, a ultima scena
e da tragedia o derradeiro
acto,
e essa cabeça pallida, serena,
no frio travesseiro d'um grabato.

Desenhou esse hospicio, uma gehena,
onde vai terminar muito
apparato,
e depois, ai! depois, fria e fatal
a desolada lagrima final!
Quando acabou, sentia-se na salla
0. ruido dos choros suffocados, e os soluços e as lastimas que exala a
Dôr nos corações muito abalados. O Conde estava em pé, hirto, e
sem falla, hirtos, sem falla, em pé, os convidados, e as damas
atiravam soluçantes, ás plantas do plebeu os seus brilhantes.
«Guardai--o velho disse--altas senhoras!
as vossas bellas joias
preciosas,
que já de nada servem n'estas horas
ao que morreu, sem
vossas mãos piedosas.
Prendei-as novamente ás tranças louras,
que
o cantor, n'estas horas luctuosas,
para ir enterrar-se, á luz do sol,

carece só da esmola d'um lençol!

O Conde deu uma ordem. N'um momento
um nitido lençol pagens
trouxeram.
Ao pegar-lhe no rosto macilento
do plebeu as lagrimas
correram.
«Eu chóro--bradou elle--esse talento,
esse craneo que as
lagrimas arderam,
e que em premio do genio que trabalha
só teve
por esmolla esta mortalha!
«Este lençol váe ser o teu sudario
ó grande Genio! que rollaste á praia

da Morte, desgostoso e solitario,
mais branco do que a lua que
desmaia.
Quando soar teu sino funerario,
e no teu craneo a campa
rasa caia,
chorai damas, barões, n'um chôro fundo
a maior alma que
deitou o mundo!
Essas faces chorai, as quaes araram,
as lagrimas do abandono e da
desgraça,
as quaes como carvões rubros queimaram,
ou como um
vento d'areal que passa:
este craneo chorai, de cuja taça
as lagrimas
de sangue s'entornaram,
e este lençol sabei damas, barões
vai
embrulhar o corpo de Camões!
E novamente as lagrimas correram,
e os soluços de novo rebentaram,

as côres novamente se perderam,
e os convivas em pé se
levantaram:
os lacaios o passo suspenderam,
muitas damas
mimosas desmaiaram,
como caiem as lagrimas internas
nas
funeraes separações eternas.
O velho ia a sair. Porem o Conde
0. deteve e bradou:--«Que nome é o teu ó homem singular, onde
s'esconde um peito que é mais nobre do que o meu? Por que
reinos cruzaste? Dize aonde aprendeste, ó phantastico plebeu! a
fallar das extranhas afflicções, d'um modo que sacode os
corações...?!»
O velho então ergueu-se, em toda a altura
do seu corpo potente e
agigantado,
e deixou ver a athletica figura,
de sorte que pareceu
ter-se elevado.
E então, n'um tom terrivel d'amargura,
que deixou
todo o mundo alvoroçado,
bradou num ai, n'um grito, extranho e

novo
--Sou o Pranto do Povo e volto ao Povo!
CANTO QUARTO
A Lagrima de Marmore
Essa lagrima immovel que se gela
sobre as palpebras roxas dos
finados,
e que eu
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