A Fome de Camões | Page 6

António Gomes Leal
riu. As glorias do Passado
dos heroes e dos feitos d'outra
edade
nos castellos, no mar illimitado,
hoje fazem sorrir a mocidade!

As glorias d'avós só tem o lado
poetico de dar solemnidade
e
grandes tons magnificos, imponentes,
nas sallas, entre as tellas de
parentes!
Elle, o Genio, cantou esses combates
dos homens, e das forças do
insondavel
da eterna Dôr, naufragios, e os embates
terriveis do que
é fragil e mudavel!

Castigou com a satyra os dilates
do arbitrario,

do injusto, e miseravel.
Foi poeta, philosopho, e guerreiro.
Só
nunca conseguiu ser um toureiro!....
E o velho sorriu amargamente,
com um sorriso caustico, sombrio,

n'um riso superior em que se sente
uma alma forte que jámais falliu.

O Conde então, bradou-lhe secamente,
com um grande ar todo
solemne e frio:
«Antes de tudo dir-me-has primeiro,
se és fidalgo,
peão, ou cavalleiro!
«E narra-nos depois, meudamente,
a mim, aos cavalleiros e senhores,

e ás preciosas damas, que ao presente
t'escutam, piedosas sempre
ás dôres:
narra-nos essa historia surprehente
d'esse genio infeliz, e
esses horrores,
que trazes, como vejo, na lembrança,
com mais
respeito que a dos pares de França.
De novo tudo riu. Toda a sonora
e ampla salla echoou com as risadas.

Viam-se rir as boccas côr d'aurora
das magnificas damas decotadas.

Duquezas louras, tranças côr d'amora,
com bellas mãos, macias,
delicadas,
abafavam o riso em transparentes
lenços lacerados entre
os dentes.
O velho ergueu-se em toda a magestade
e bradou n'uma voz terrivel,
dura,
que fez cessar de prompto a hilaridade,
pelo tom nunca
ouvido de amargura:
--«Ah! infeliz, indigna Humanidade
mil vezes
infeliz! se a Creatura
sempre se risse assim do que é sublime
ou
quando o mundo se infamou n'um crime!
Ah! infeliz mil vezes! se o que é nobre
e o que é infame, ignobil,
monstruoso,
sob o Azul sagrado que nos cobre
tivesse o mesmo
aplauso victorioso!
Maldito e excomungado fosse o pobre!
e
maldito o Destino criminoso!
por trabalhar ainda para o mundo
com
um suor inutil e infecundo!
«Maldita fosse a Vida e o ardente beijo
do Amor que produziu a
Creação,

maldito o Sonho e as azas do Desejo
maldito o Pranto, a

Ancia, e a Aspiração!
Despenhada mil vezes sobre um brejo
de
insondavel miseria e humilhação
0. mundo se abysmasse n'um inferno do implacavel, ancioso gelo
eterno!
«Maldito fosse tudo o que suspira,
maldita a Dôr, mais o soluço
Humano,
maldita a Alma e a lagrima da Lyra,
maldito tudo quanto
é grande e insano!
Que sobre o mundo horrivel, onde gyra
a
serpente da Idea no oceano
da treva, o derradeiro homem horrendo

expirasse, ainda rindo, e maldizendo!
«Agora, quanto a mim, ó altas damas
magnificas, divinas,
scintillantes,
e cujos bellos olhos teem mais chammas
do que os
olhos dos rigidos brilhantes,
antes d'ouvirdes os funestos dramas
da
fome, horrorisai-vos, sabei antes
que eu sou só um plebeu vil que
trabalha,
e que saio das ondas da canalha!
«Senti tambem em mim o fogo ardente
da Lyra perpassar-me pela
fronte,
e amei tudo o que é justo e que é potente,
e meus irmãos
chamei ao bosque e ao monte.
Nos desertos castellos do Occidente,

ás nuvens côr de sangue do horisonte,
tambem eu fui sentar-me nas
collinas,
a chorar sobre as glorias e as ruinas!
«Mas o Genio infeliz, o vulto immenso
. heroe cantor vencido pela morte esse que me perturba, quando penso
no implacavel da tyrana Sorte, esse que já entrou no bosque
denso, que já partiu o muro bronzeo e forte, que em breve vão
deitar na escura valla, esse, só de eu fallar... treme-me a falla!»
O velho então contou a trabalhosa
lenda do Genio, a musa, e seu
destino,
a intuição da Natureza rumorosa
da flor, da sombra, e rio
crystallino.
Como o Sol pae das plantas, e da rosa,
penhasco
alcantillado e voz do sino,
Vegetações, florestas, nuvens, ventos,
e
cellulas, raizes, pensamentos;

tudo que é vida que tem alma e sente,
tudo que é flor suave e tem
perfume,
tudo que é aza e corta o ar luzente,
tudo que é astro, brilha
ou que tem lume,
tudo que foge liquido e corrente,
tudo que em
corpo e alma se resume,
tudo que é bello como o sol na alfombra
ou
fundo e triste como a voz da Sombra,
todo esse vasto Todo verde e bello,
toda essa santa Natureza enorme,
0. luar como a folha d'um cutello,
. minerio que crêem que só dorme, as heras nas ruinas do castello, os
mulluscos e a larva humilde e informe, tudo isso bello ou feio
que se ostenta, tem voz, tem alma, chora e se lamenta!
Mas que o Genio no meio d'isto tudo
soffre mais, porque entende
estes lamentos!
Elle traduz a Dor d'isso que é mudo,
e resume os
geraes desolamentos!
Não tendo contra a Sorte um outro escudo

que não sejam seus fortes pensamentos,
passa curvado n'um pesar
profundo,
--sentindo em si o mal de todo o mundo!
E todos escutavam silenciosos
damas, barões, religiosamente,
os
sentidos geraes mysteriosos
das palavras do velho extranho e ardente.

E cuidavam ouvir os mil chorosos
e soluçantes ais,
longinquamente,
das subterraneas Cousas infelizes:
os ais da planta
e os choros das raizes!
Elle pintou depois o Genio, quando
deixou prender seu forte coração

nos sorrisos d'um gesto puro e brando,
e vagou na torrente da
Paixão.
Como feridos rouxinoes cantando,
os seus versos resavam
da afflição,
das tragedias, desgraças e dos brados
dos
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