me
commove o seio!
Podes levar, ó Sombra! o teu thesouro.
Não val
tanto suor teu verde louro!»
«Não sou Amor, nem Musa, nem Gloria,
--a Sombra disse--nem
talentos faço.
Mais terrivel, funesta é minha historia!
Mais duro e
horrendo o peso do meu braço!
Não colho os louros; sitios onde
passo
traçam sulcos de sangue na memoria.
Ah! mil vezes terrivel é
meu nome
tenebroso e profundo!... Eu sou a Fome.»
«A Fome!--o Genio clama--dando um grito,
como um soluço ultimo
estridente.
A Fome me conduz para o infinito!
A Fome é meu final,
o meu poente!
Foi isto que ganhou meu braço ardente,
foi isto que
ganhou meu estro escripto!
a agonia e o suor n'um mundo ingrato,
desillusões, e a enxerga d'um grabato!
«Ó illusões, ó nuvens peregrinas,
horas da mocidade já fugidas!
illusões ó princezas perseguidas
galopando em phantasticas collinas,
ó brancas cathedraes de pedra erguidas
com as santas, á tarde,
purpurinas
vegetações, florestas, ideal
recebei meu adeus no
hospital!»
«Como tu, tenho visto,--disse a Fome--
pender muita cabeça
veneravel,
muito craneo de genio, muito nome,
que eu lancei no
abysmo do insondavel.
Muitos que a gloria céga e que consomme
d'uma selvagem sede insaciavel,
tenho cingido como a tristes noivos,
e hoje estão nas raizes, e entre os goivos!
«Muitos tenho apertado entre meus dedos
que se hão finado n'um
febril delirio,
e teem-me dito os ultimos segredos,
com suas bocas
lividas de lyrio.
Dormem alguns á sombra d'arvoredos;
mas outros
para mais mortal martyrio,
ninguem lhe importa em seu desprezo
fundo
onde estão os seus ossos sobre o mundo!
«Gigantes craneos de candente lava
teem repousado no meu magro
peito!
Bem lindos corpos onde a morta crava
seus dentes, dormem
sob o ceu perfeito!
Mas, quando um genio como tu, no leito
mata
ao abandono a geração escrava,
pelo universo, cumplice sombrio,
corre um remorso, como um calafrio.
«Por isso eu vim colher-te, inda tremente
logo que expires, ó Genio,
sem confortos,
a lagrima de marmore imponente,
que se gela nas
palpebras dos mortos.
Por que quero levar como presente
aos
principes, aos povos absortos,
e aos astros a lagrima marmorea,
que
n'um grabato derramou a gloria!
«Mas, se acaso na terra e sobre os mares
ninguem avaliar este teu
pranto,
acima irei das nuvens e dos ares
dos astros, dos planetas, do
Espanto:
mais acima das Dores e dos Pezares,
da Justiça sublime ao
throno santo,
ás solemnes e eternas regiões,
pedir justiça ao pranto
de Camões.»
Dizendo isto a Sombra descarnada
debruçou-se do Genio sobre o
leito.
Camões morria já: hirta e gelada
a Fome lhe crusou as mãos
no peito:
e a lagrima marmorea, regellada,
lagrima que infunde
pavido respeito,
então colheu do rosto moribundo,
--como um frio
protesto contra o mundo.
CANTO TERCEIRO
O Lençol do Genio
O conde Vimioso em seu solar
dá uma ceia a nobres e senhores;
Estalam as risadas pelo ar.
Pelos copos espumam os licores.
A Gula
e a Carne ali gosam a par:
falla-se em caças, touros, e d'amores:
e
riem d'entre as suas pedrarias
marquesas que hoje estão em galerias.
N'isto um extranho velho entra na salla,
hirto e solemne, como um
quadro antigo;
seu porte triste pelos peitos cala,
seu ar hostil é
como d'inimigo.
Os risos param, emmudece a falla,
como ao ver um
remorso, ou um castigo.
Calam barões fallando de corseis,
e as
damas com as mãos cheias d'anneis.
E o velho disse:--Extranho é meu pedido!
Extranho sim! no meio
d'uma festa:
mas venho por um morto protegido,
e este pedido os
labios não me cresta!
Para um Genio de que hoje nada resta,
para
um Genio da fome consummido,
um Genio infeliz! um apagado sol,
venho pedir a esmolla d'um lençol!
O lugubre pedido n'um momento
fez em todos roçar um calafrio:
figurou-se-lhes o gesto macilento
da morte, ao longe, em seu corcel
sombrio:
figurou-se-lhes a Febre, o Passamento,
e a Doença em seu
catre humido e frio,
e as damas, os barões, e os cavalleiros
perderam os sorrisos zombeteiros.
Porém o Conde dominando o gelo
do terror que estragava a sua ceia,
e desmaiava o busto grego e bello
da mulher por quem todo se
incendeia,
com um riso que tem do orgulho o sello
bradou ao velho
cujo serio odeia:
Que genio é esse então, bom velho honrado,
que
comparais ao sol já apagado!?
Todos riram. Um riso irresistivel
omnipotente, intrepido, animal,
pela sala estallou, bronco e terrivel,
como um insulto e a folha d'um
punhal,
O rude velho tragico, impassivel,
deixou passar aquelle
vendaval,
depois n'um rir, de eronico respeito,
os longos braços
encruzou no peito.
Zombai--o velho disse--altos senhores!
e magnificas damas
scintillantes,
nas ricas pedrarias, plumas, flores,
mais brancas do
que os vossos diamantes!
Zombai ao pé dos vinhos, dos licores,
das
baixellas lavradas, dos amantes,
d'esta cousa tão comica e sem nome...
d'um Genio pobre e que morreu de fome!
E o velho riu--Ah! de que serve, é certo,
um Genio infeliz? um
portador, de lyra!?
de que serve dos Prantos no deserto
um
instrumento que uns sons doces tira?!
Um Genio é lava que
importuna ao perto,
e um grande craneo que o talento inspira,
se
com seu canto consolou as almas....
que coma o louro e as
triumphantes palmas!...
Ah! que servem andar como pharoes,
como Moyzés a conduzir um
povo,
alvoroçando as almas para os soes,
n'um canto heroico,
original e novo?
Se com os prantos d'estes rouxinoes
que alvoroçam
e turbam, me commovo,
talvez vos choque e ás almas verdadeiras,
que não façam crescer as sementeiras!
E o velho
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