A Fome de Camões | Page 4

António Gomes Leal
me
fallaste de tristeza.
Desci comtigo ao reino dos espantos!
Comtigo á
tarde fui pela deveza!
Comtigo á noute fui, pelas florestas,
apanhar
_boas noutes_ e giestas!
«Comtigo eu devassei esses segredos,
das raizes, das Cousas, das
Origens,
do germinar dos lyrios e arvoredos,
e fiz aos astros soluçar
as virgens.
Comtigo fui, nas pontas dos rochedos,
debruçar-me do
abysmo nas vertigens,
e andei errante pelo mundo á tôa,
como folha
que vai n'uma lagôa!
«Mas hoje gela-me o suor na testa
e convulsa-me o corpo um calafrio.

Desejo, sonho, amor, nada me resta!
Nada sacode meu cadaver frio!

Comtigo não irei pela floresta!
Não mais irei comtigo pelo rio!

por que o sopro vital em mim expira,
como as cordas que estallam
d'uma lyra!
«Não sou a Musa,--disse a Sombra,--não!
Mas tenho visto os prantos
dos amantes,
e a desolada e livida expressão
dos seus gestos, nos
ultimos instantes.
As cristallinas lagrimas brilhantes
tenho aparado
n'esta magra mão;
cerrado os olhos com meus frios dedos,
e
escutado os seus ultimos segredos!»
E, continuou a olhal-o fixamente,
com o seu olhar tragico e
marmoreo,
e um suspiro vibrou profundamente
dolorido, no vasto
dormitorio.

Como atravez d'um sonho incoherente,
n'este sonho da

vida transitorio,
0. Genio leu, no seu olhar parado, todo o luto e terror do seu Passado.
«Ah! já sei quem tu és,--o Genio brada--
Conheço-o agora em teu
olhar funesto.
Leio-o na tua fronte amargurada,
e na expressão
sinistra do teu gesto.
Tu és uma saudade aos pés calcada,
. lyrio d'um desgosto extranho e mesto, tu és a prole da Lagrima e da
Dôr. --És o sinistro e monstruoso Amor!
«Mas não és esse Amor doce e sereno,
nascido da Belleza, o Amor
antigo,
irmão das Graças, lyrico e pequeno
amando o rizo, o campo,
e o sol amigo!
És o Amor desolado como um threno,
terrivel como
o açoute d'um castigo,
e empunhando na dextra ensanguentada
um
ramo de cyprestes e uma espada!
«Como eu soffri das largas cicatrises,
que abriste no meu peito, sem
piedade!
Como eu cantei meus sonhos infelises!
Como eu te amei
ao sol da mocidade!
Como inda sinto as pontas das raizes
do amor
que alimentei, e com saudade
lembram-me as tardes que ia nos
caminhos,
pensando em ti, sentindo teus espinhos!
«Mas hoje mocidade, vida alento,
tudo se foi, para não mais voltar!

Vae dissipar-se tudo, como ao vento,
do fim da tarde o fumo azul
d'um lar
Já sinto fluctuar-me o pensamento
como uma flôr aquatica
n'um mar,
e nas paginas do livro dos meus ais
a Sombra pôr o triste
_nunca mais_!»
«Não sou o negro Amor, irmão da Pena
--a Sombra disse--e não
empunho espada,
mas tenho visto a tenebrosa scena,
da tragedia da
Vida mallograda.
Tenho visto a blasphemia que condemna,
a
lagrima que queima ensanguentada,
a lagrima que gela e que não
corre,
como um desejo qu'estacou, e morre!»
E continuou a olhal-o fixamente
com o seu olhar tragico e marmoreo,

e um suspiro vibrou profundamente

dolorido, no vasto dormitorio.


Como atravez d'um sonho incoherente,
n'este sonho da vida
transitorio,
0. Genio leu, no seu olhar parado, todo o luto e terror do seu Passado.
«Conheço-te afinal,--n'um grande brado
. Genio diz.--Tu és a velha Gloria, mas a Gloria do genio amaldiçoado,
a Gloria das lagrimas da Historia! És a Gloria do genio e do
soldado que expira soluçando e sem memoria, n'um doloroso e
livido arrepio, como um cadaver que regeita o rio.
«Deves ter visto as penas penetrantes,
como os bicos agudos do
espinheiro,
as desvelladas noutes soluçantes,
mais negras do que o
rosto d'um guerreiro,
e as tristes magras mãos febrecitantes
que te
buscam a ti, n'um derradeiro
esforço d'anciedade e de desdita,
com
a blasphemia e a lagrima maldita!
«Illusão! Illusão! sonho que encerra
em si a pobre humanidade inteira,

louros que faz buscar a morte e a guerra
nuvem que foge, á hora
derradeira!
Gloria! nome vão, a quem a Terra
busca, e só palpa a
livida caveira,
como pallidas flores das illusões,
que esmagaram os
pés das procissões!
«Gloria! nome vão! sonho e chimera,
iris triumphante de vistosas
côres,
verme lusente que vagueia na hera,
sonho d'estio entre luar e
flores!
Ó giesta gentil da Primavera,
amendoeira da manhã
d'amores,
por que nos gelas do Destino á beira,
como a chuva que
molha uma bandeira!?
«Gloria! esphinge eterna que dominas
com teu olhar prophetico do
Incerto,
que nos fazes sonhar verdes collinas;
na poeira da areia do
deserto,
Harmonia longiqua, mas que perto,
cremos ouvir,
marchando entre ruinas,
e que de repente nos fulmina e estalla,

como um conviva que morreu na salla!
«Como eu te procurei por val e monte,
e me rasguei nas lanças dos

espinhos!
Como eu vi teus acenos no horisonte
a ensinar-me as
veredas e os caminhos!
Como eu te vi um dia n'uma ponte,
n'um
zimborio, n'uns campos entre ninhos,
e outra vez, n'uma lua socegada,

a galopar nas pedras d'uma estrada!
«Vi-te ainda outra vez, ao vento frio
d'uma tremenda e lugubre
procella.
Estendias-me a mão, entre o assobio
do nordeste e das
ondas, branca e bella.
Bem te vi, eras tu, e foi aquella
santa energia,
que hoje já fugiu,
foi esse teu olhar que hoje desmaia,
que exhausto
e salvo me atirou á praia!
«Mas só hoje te vejo claramente!
Só hoje, fundo, n'esses olhos leio!

Tardaste muito em vir, Sombra inclemente!
Já muito tarde o teu
auxilio veio!
Desalentado, pallido, doente,
nenhum alento
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