A Filha do Cabinda | Page 5

Alfredo Campos
sabes o que s?o saudades, cabinda? perguntou Magdalena ao negro.
--Saudades? repetiu elle, scismando na resposta.
--Sim.
--Sei, senhora mo?a. é ter o negro a alma a doer muito, como á pomba rola, quando lhe tiram os filhos, ou o parceiro do ninho do matto.
--é isso. Pois olha, eu tenho saudades, e n?o sei de quê. Sinto a alma a pedir-me uma coisa, que eu n?o comprehendo, e arde-me o cora??o em desejos loucos, mas desconhecidos. Quero, e n?o sei o que quero; desejo, e pergunto o que desejo. N?o me falta nada, porque, gra?as a Deus, sou rica; n?o ha vontade nem capricho que o papae me n?o satisfa?a, e, olha, apesar de tudo, n?o vivo contente. De tarde, sempre que chega esta hora, sinto um peso na alma, que eu n?o sei de onde vem, nem para quê. De noite, ent?o de noite, sonho muito e tenho saudades d'esses sonhos quando acordo. Vejo ao meu lado um rosto que me sorri, uns labios que me dizem coisas que ninguem ainda me disse, coisas bonitas, doces e encantadoras; umas m?os que me fazem festas, que me alisam os cabellos e m'os enfeitam de flores, e uns olhos que me olham muito, e que penetram até dentro do meu cora??o. Mas depois acordo, desapparece o sonho, vejo-me só, e tenho saudades, cabinda...
O negro, se bem que nada comprehendera de tudo quanto lhe dissera Magdalena, é certo que o havia adivinhado, porque acudiu rapidamente, apenas ella acabou:
--é a alma do branco que vem fallar á alma da senhora mo?a.
--Do branco? perguntou Magdalena, com ar de quem n?o comprehendia.
--Do branco, sim. A on?a do cannavial e o jabirú das lag?as teem o seu parceiro, como tinha o cabinda, quando veio da sua terra. E a senhora mo?a, vê o branco nos sonhos, como o cabinda vê a sua parceira e os filhos, mas o branco n?o apparece.
--N?o te entendo, cabinda, acudiu Magdalena, scismando no que o negro lhe dizia.
--O mal da senhora mo?a é aqui, disse o cabinda, indicando no peito o logar do cora??o. O branco que a minha filha vê á noite, quando dorme, é que ha de vir cural-a.
--Como?
--N?o sei.
--Quando?
--Elle virá. O negro tambem tinha isso, lá, na sua terra. No matto, no cannavial, quando o negro andava á ca?a, e no rio, quando dormia dentro da sua can?a, o cabinda n?o tinha a sua parceira, mas o negro via-a sempre. E um dia a parceira do cabinda appareceu, e o negro n?o soffreu mais, nem tornou a chorar.
Magdalena continuou vagarosa ao lado do negro, mas visivelmente melancholica e pensativa, talvez com o que elle acabava de dizer-lhe.
Estava ella na idade em que o cora??o come?a a desabrochar as primeiras fl?res e a sentir os primeiros desejos. Tinha algumas vezes ouvido fallar d'amor ás suas amigas; vira umas alegres, tristes outras, umas cheias de enthusiasmo e ventura, outras soffredoras e melancholicas, e ella sempre indifferente a tudo, sempre sem lhes ligar outra importancia mais do que a que nascia da sua amisade. Nunca um homem lhe rendera uma fineza, nunca um homem lhe dardejára um olhar expressivo; e se algum o fizera, Magdalena ou n?o o viu ou n?o o comprehendeu.
Agora, sim. Agora, as saudades de que fallava; os sonhos que lhe floriam ás noites, ou lhe esmaltavam o repouso, eram os tra?os claros dos desejos, que tinha na alma e no cora??o, de amar e ser tambem amada, de gozar os dulcissimos effluvios do sentimento, que lhe irrompia no peito.
Tinham chegado assim ao terreiro, que havia na rectaguarda do palacete, para o qual se descia por uma escadaria de pedra, no extremo de uma vasta varanda.
Jorge de Macedo estava de pé, no topo das escadas, fumando um charuto, e n'uma attitude de quem esperava alguem.
Magdalena, apenas o viu, desatou a correr e exclamou:
--Ah! o papae!
O negro ficou só, e Jorge sorriu-se, dizendo:
--Olha que te can?as, doidinha!
A filha do cabinda transpoz rapida o espa?o que a separava de Jorge, e apenas se achou junto d'elle, fez dos bra?os um collar, com que lhe prendeu o pesco?o, e come?ou a cobril-o de beijos carinhosissimos, a que elle correspondia em visivel express?o de jubilo e de ventura.
Eram os beijos da flor ao tronco onde nascera! eram os affectos gerados pelos la?os mysteriosos do sangue!
Que beijos aquelles! que affecto se n?o desdobrava alli!
--Mausinho, que me deixou hoje jantar só, queixou-se ella com fingido agastamento.
--Tive muito que fazer, filha. Mas déste o teu passeio até ao lago, n?o?
--Dei, papae, acompanhou-me o cabinda.
O negro chegava n'este momento, diringindo-se a Jorge:
--A sua ben??o, meu senhor!
--Adeus, cabinda.
--E amanh??... perguntou Magdalena, sorrindo com inten??o.
--Amanh?...
--é dia de festa; faz o papae annos e havemos de jantar muito alegres! atalhou ella.
--Muito. E vais ter hospedes.
--Hospedes? interrogou com curiosidade.
--Sim. Convidei o guarda livros, e os caixeiros; vem toda a gente do armazem.
--Oh! que
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