A Filha do Cabinda | Page 4

Alfredo Campos
a um lado e p?z-se a lêr alto, com a sua voz meiga, seductora e angelical.
Era um livro de versos, era um livro d'amor, o que ella lia!
E t?o prêsa estava com as phrases, que ia repetindo, t?o scismadoramente como se em verdade as sentisse; t?o distrahida estava de tudo, de todos e de quanto a cercava, que nem ouvia os gorgeios compassados d'um bemtevi, que a sua voz harmoniosa havia desafiado, occulto entre as folhas do ramo d'uma grande mangueira, que quasi se debru?ava sobre o lago.
Chegou a um ponto da leitura e deteve-se suspirando. Depois repetiu ainda a quadra que acabára de recitar, e que dizia assim:
Suspiras, alma, n'um anceio languido? Ninguem te affaga, perfumada fl?r? Ao sol as rosas da manh? desdobram-se, E a brisa affaga-as com carinho e amor!
E fechou o livro e ficou a scismar, com os olhos negros e formosos, cravados, vagamente, n'um ponto do horisonte.
Passados instantes, encostou a face á m?o, como que cedendo ao pêso d'um somno voluptuoso, e por fim deixou cahir o bra?o sobre a meza e o rosto sobre o bra?o, n'uma especie de somnolencia, sonhando, talvez, com as phrases do livro, que havia acabado de lêr, e que, sem duvida, a impressionaram ou lhe fallarám á alma.
As borboletas d'azas douradas, lá andavam em volta d'ella, como que embalando-a nos sonhos, que deviam esmaltar-lhe a somnolencia.
O sol havia-se já escondido o bastante para deixar a terra envolta nas sombras do crepusculo.
E a n?o serem os murmurios da brisa e os queixumes da agua, cahindo no lago pela bocca do trit?o, nada mais se ouvia n'aquella hora da tarde, no retiro aonde repousava Magdalena.
De subito come?ou a fazer-se sentir um leve ruido. Eram as folhas seccas do ch?o, gemendo debaixo dos pés d'alguem, que se aproximava.
Quem seria?
As aves receiosas deixavam os seus asylos, architectados nos ramos das arvores frondosas, ante a passagem do ser que se aproximava.
Um minuto depois, um negro surgia junto ao lago.
Era o cabinda.
O preto deu com os olhos em Magdalena, parou e susteve a respira??o, com mêdo de a acordar, mas nos olhos e nos labios brilhou-lhe logo um sorriso de verdadeira alegria.
--Oh! exclamou elle baixinho, é ella, a filha do cabinda!
E foi, pé ante pé, collocar-se de joelhos, junto á meza de pedra, em posi??o d'onde melhor podia contemplar a sua filha, e assim ficou sem despregar os olhos d'ella.
Era uma loucura aquella affei??o do negro!

III
O cabinda permanecia alli, como o verdadeiro crente, em face do altar do Christo crucificado.
Magdalena prendia-lhe os sentidos, absorvia-o completamente.
A cada respira??o, a cada ondula??o do seio da virgem, extremecia elle e abria mais os seus grandes olhos, n'uma express?o alternativamente de receio e de esperan?a, que ella acordasse.
Por fim, Magdalena estremeceu e levantou de subito o rosto formosissimo. O seu olhar meigo e deslumbrante foi encontrar o negro ajoelhado, com os olhos pregados n'ella.
--Ah! és tu cabinda?
--O negro, senhora mo?a!
--E que fazias ahi de joelhos?
--Olhava para a minha filha, que dormia...
--E que sonhava tambem, cabinda. Tu nunca sonhas, quando dormes?
--Sonhar? repetiu o cabinda. á noite, quando o negro se deita, e faz escuro em volta d'elle, o cabinda vê a sua senhora, que foi para a terra do Pai dos brancos; vê a senhora mo?a muito contente, com a cabe?a cheia de rosas lindas, e o senhor a dar muitos beijos n'ella. E o cabinda lembra-se, tambem, dos seus filhos e da sua companheira, e chora de noite lagrimas no escuro.
--Coitado!
--Oh! mas o cabinda é alegre, como o jacaiol da floresta, quando a sua filha ri e falla ao negro!
--Pois olha, meu amigo, estou agora muito triste... muito!...
E Magdalena ficou como que embebida n'uma ideia que a dominava, com o rosto em visivel express?o de melancholia.
--E que tem a senhora mo?a? perguntou o negro com anciedade e receio. O cabinda n?o a quer triste; as arapongas que chorem, quando o ca?ador as ferir.
--Nem eu sei o que tenho. Vamos andando que eu conto-t'o.
E tornando a prender as fl?res entre as folhas do livro, seguiu, acompanhada pelo negro, uma das aleas oppostas áquella por onde tinha chegado ao lago.
Magdalena ia vagarosa e pensativa; o negro, ao lado d'ella, caminhava abstracto de tudo, sem vêr mais nada.
Que magestoso quadro aquelle!
Magdalena era o anjo meigo e deslumbrante, da mocidade cheia d'explendores, a que sorriem todas as esperan?as, e para o qual todos os horisontes s?o vastos, largos e floridos!
O cabinda era o velho escravo, fiel e dedicado, capaz de tudo para salvar a vida dos seus senhores, saltando de contente com dois affagos e humilhando-se submisso á menor reprehens?o.
Os dois caminhavam a par.
Era n'essa hora mysteriosa dos esponsaes do dia com a noite.
Por sobre as suas cabe?as arqueava-se, verdejante, o docel das jaqueiras, d'um lado, e dos ramos frondosos das mangueiras, do outro. As aves já se haviam retirado aos gratos asylos.
--Tu
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