A Cidade e as Serras | Page 8

José Maria Eça de Queiroz
poço, pousava uma Machina-de-escrever: e
adiante era uma immensa Machina-de-calcular, com fileiras de buracos
d'onde espreitavam, esperando, numeros rigidos e de ferro. Depois
parei em frente da estante que me preoccupava, assim solitaria, á
maneira d'uma torre n'uma planicie, com o seu alto pharol. Toda uma
das suas faces estava repleta de Diccionarios; a outra de Manuaes; a
outra de Atlas; a ultima de Guias, e entre elles, abrindo um folio,
encontrei o Guia das ruas de Samarkande. Que macissa torre de
informação! Sobre prateleiras admirei apparelhos que não
comprehendia:--um composto de laminas de gelatina, onde
desmaiavam, meio-chupadas, as linhas d'uma carta, talvez amorosa;
outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o decepar,
um cutello funesto; outro avançando a bocca d'uma tuba, toda aberta
para as vozes do invisivel. Cingidos aos umbraes, liados ás cimalhas,

luziam arames, que fugiam através do tecto, para o espaço. Todos
mergulhavam em forças universaes, todos transmittiam forças
universaes. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu
amigo e entrára na sua domesticidade!...
Jacintho atirou uma exclamação impaciente:
--Oh, estas pennas electricas!... Que secca!
Amarrotára com colera a carta começada--eu escapei, respirando, para
a Bibliotheca. Que magestoso armazem dos productos do Raciocinio e
da Imaginação! Alli jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciaes a uma cultura humana. Logo á entrada notei, em ouro n'uma
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos
Economistas. Avancei--e percorri, espantado, oito metros de Economia
Politica. Depois avistei os Philosophos e os seus commentadores, que
revestiam toda uma parede, desde as escólas Pre-socraticas até ás
escólas Neo-pessimistas. N'aquellas pranchas se acastellavam mais de
dois mil systemas--e que todos se contradiziam. Pelas encadernações
logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro
negro; Platão, em cima, resplandecia, n'uma pellica pura e alva. Para
diante começavam as Historias Universaes. Mas ahi uma immensa
pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos,
subia contra a estante, como fresca terra d'alluvião tapando uma riba
secular. Contornei essa collina, mergulhei na secção das Sciencias
Naturaes, peregrinando, n'um assombro crescente, da Orographia para a
Paleontologia, e da Morphologia para a Crystallographia. Essa estante
rematava junto d'uma janella rasgada sobre os Campos Elyseos. Apartei
as cortinas de velludo--e por traz descobri outra portentosa rima de
volumes, todos de Historia Religiosa, de Exegese Religiosa, que
trepavam montanhosamente até aos ultimos vidros, vedando, nas
manhãs mais candidas, o ar e a luz do Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amavel dos
Poetas. Como um repouso para o espirito esfalfado de todo aquelle
saber positivo, Jacintho aconchegára ahi um recanto, com um divan e
uma mesa de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de
charutos, de cigarros d'Oriente, de tabaqueiras do seculo XVIII. Sobre

um cofre de madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de
damascos seccos do Japão. Cedi á seducção das almofadas; trinquei um
damasco, abri um volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido,
como de um insecto de azas harmoniosas. Sorri á idéa que fossem
abelhas, compondo o seu mel n'aquelle massiço de versos em flôr.
Depois percebi que o susurro remoto e dormente vinha do cofre de
mogne, de parecer tão discreto. Arredei uma Gazeta de França; e
descornitei um cordão que emergia de um orificio, escavado no cofre, e
rematava n'um funil de marfim. Com curiosidade, encostei o funil a
esta minha confiada orelha, afeita á singeleza dos rumores da serra. E
logo uma Voz, muito mansa, mas muito dicidida, aproveitando a minha
curiosidade para me invadir e se apoderar do meu entendimento,
susurrou capciosamente:
--...«E assim, pela disposição dos cubos diabolicos, eu chego a verificar
os espaços hypermagicos!...»
Pulei, com um berro.
--Oh Jacintho, aqui ha um homem! Está aqui um homem a fallar dentro
d'uma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodigios, não se alvoroçou:
--É o Conferençophone... Exactamente como o Theatrophone; sómente
applicado ás escólas e ás conferencias. Muito commodo!... Que diz o
homem, Zé Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:
--Eu sei! Cubos diabolicos, espaços magicos, toda a sorte de horrores...
Senti dentro o sorriso superior de Jacintho:
--Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metaphysica Positiva sobre a
Quarta Dimensão... Conjecturas, uma massada! Ouve lá, tu hoje jantas
commigo e com uns amigos, Zé Fernandes?

--Não, Jacintho... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanella
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo, em
Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacintho affirmou que esta simplicidade
montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas...
Quem? O auctor do Coração Triplo, um Psychologo Feminista,
d'agudeza transcendente, Mestre muito experimentado e muito
consultado em Sciencias Sentimentaes; e Vorcan, um pintor mythico,
que interpretára ethereamente, havia um anno, a symbolia
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