A Cidade e as Serras | Page 9

José Maria Eça de Queiroz
rapsodica do
cerco de Troia, n'uma vasta composição, Helena Devastadora...
Eu coçava a barba:
--Não, Jacintho, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar
em toda esta civilisacão, lentamente, com cautella, senão rebento. Logo
na mesma tarde a electricidade, e o conferençophone, e os espaços
hypermagicos e o feminista, e o ethereo, e a symbolia devastadora, é
excessivo! Volto ámanhã.
Jacintho dobrava vagarosamente a sua carta, onde mettera sem rebuço
(como convinha á nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do
ramo que lhe floria o peito.
--Ámanhã, Zé Fernandes, tu vens antes d'almoço, com as tuas malas
dentro d'um fiacre, para te installares no 202, no teu quarto. No Hotel
são embaraços, privações. Aqui tens o telephone, o teatrophone,
livros...
Acceitei logo, com simplicidade. E Jacintho, embocando um tubo
acustico, murmurou:
--Grillo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se
fendeu, surdio o seu velho escudeiro (aquelle moleque que viera com D.
Gallião), que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro, reluzente
e veneravel na sua tesa gravata, no seu collete branco de botões de ouro.

Elle tambem estimou vêr de novo «o siô Fernandes». E, quando soube
que eu occuparia o quarto do avô Jacintho, teve um claro sorriso de
preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o sentir
emfim reprovido d'uma familia.
--Grillo, dizia Jacintho, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telephona para casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
domingo... Escuta! Eu tomo uma douche antes de jantar, tepida, a 17.
Fricção com malva-rosa.
E cahindo pesadamente para cima do divan, com um bocejo arrastado e
vago:
--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como ha sete annos,
n'este velho Paris...
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha
iniciação:
--Oh Jacintho, para que servem todos estes instrumentosinhos? Houve
já ahi um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São
uteis?
Jacintho esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava.--Providenciaes, meu filho, absolutamente providenciaes,
pela simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este
arrancava as pennas velhas; o outro numerava rapidamente as paginas
d'um manuscripto; aquell'outro, além, raspava emendas... E ainda os
havia para collar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar
documentos...
--Mas com effeito, accrescentou, é uma sécca. Com as molas, com os
bicos, ás vezes magoam, ferem... Já me succedeu inutilisar cartas por as
ter sujado com dedadas de sangue. É uma massada!
Então, como o meu amigo espreitára novamente o relogio monumental,
não lhe quiz retardar a consolação da douche e da malva-rosa.

--Bem, Jacintho, já te revi, já me contentei... Agora até ámanhã, com as
malas.
--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!
E, através da Bibliotheca, penetramos na sala de jantar,--que me
encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, laccada,
mais lustrosa e macia que setim, revestia as paredes, encaixilhando
medalhões de damasco côr de morango, de morango muito maduro e
esmagado: os aparadores, discretamente lavrados em florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma lacca nevada: e damascos amorangados
estofavam tambem as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a
lentidão de gulas delicadas, de gulas intellectuaes.
--Viva o meu Principe! Sim senhor... Eis aqui um comedoiro muito
comprehensivel e muito repousante, Jacintho!
--Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me
impressionei quando Jacintho me desvendou que um era para as ostras,
outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro
para as fructas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma
sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos:--um
Bordeus rosado em infusas de crystal, e Champagne gelando dentro de
baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo
redundante, quasi assustador d'aguas--aguas oxigenadas, aguas
carbonatadas, aguas phosphatadas, aguas esterilisadas, aguas de saes,
outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados therapeuticos
impressos em rotulos.
--Santissimo nome de Deus, Jacintho! Então és ainda o mesmo
tremendo bebedor d'agua, hein?... Un aquatico! como dizia o nosso
poeta chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Elle derramou, por sobre toda aquella garrafaria encarapuçada em

metal, um olhar desconsolado:
--Não... É por causa das aguas da Cidade, contaminadas, atulhadas de
microbios... Mas ainda não encontrei uma bôa agua que me convenha,
que me satisfaça... Até soffro sêde.
Desejei então conhecer o jantar do Psychologo e do
Symbolista--traçado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre
laminas de marfim. Começava honradamente por ostras classicas, de
Marennes. Depois apparecia uma sopa d'alcachofras e ovas de carpa...
--É bom?
Jacintho encolheu desinteressadamente os hombros:
--Sim... Eu não tenho nunca appetite, já ha tempos... Já ha annos.
Do outro prato só comprehendi que continha frangos e tubaras. Depois
saboreariam
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 89
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.