A Cidade e as Serras | Page 7

José Maria Eça de Queiroz
tarde de Maio, em Guiães. Um creado, mais attento ao
thermometro que um piloto á agulha, regulava destramente a bocca
dourada do calorifero. E perfumadores entre palmeiras, como n'um
terrasso santo de Benares, esparziam um vapor, aromatisando e
salutarmente humedecendo aquelle ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado sêr:
--Eis a civilisação!
Jacintho empurrou uma porta, penetramos n'uma nave cheia de
magestade e sombra, onde reconheci a Bibliotheca por tropeçar n'uma

pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo
na parede: e uma corôa de lumes electricos, refulgindo entre os lavores
do tecto, alumiou as estantes monumentaes, todas d'ebano. N'ellas
repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em
escarlate, em negro, com retoques d'ouro, hirtos na sua pompa e na sua
auctoridade como doutores n'um concilio.
Não contive a minha admiração:
--Oh Jacintho! Que deposito!
Elle murmurou, n'um sorriso descorado:
--Ha que lêr, ha que lêr...
Reparei então que o meu amigo emmagrecera: e que o nariz se lhe
afilára mais entre duas rugas muito fundas, como as d'um comediante
cançado. Os anneis do seu cabello lanigero rareavam sobre a testa, que
perdera a antiga serenidade de marmore bem polido. Não frisava agora
o bigode murcho, cahido em fios pensativos. Tambem notei que
corcovava.
Elle erguêra uma tapeçaria--entramos no seu gabinete de trabalho, que
me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os
divans, as madeiras, eram verdes, d'um verde profundo de folha de
louro. Sêdas verdes envolviam as luzes electricas, dispersas em
lampadas tão baixas que lembravam estrellas cahidas por cima das
mesas, acabando de arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, núa e clara,
no alto d'uma estante quadrada, esguia, solitaria como uma torre n'uma
planicie, e de que o lume parecia ser o pharol melancolico. Um biombo
de laca verde, fresco verde de relva, resguardava a chaminé de
marmore verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam as brazas
d'uma lenha aromatica. E entre aquelles verdes reluzia, por sobre
peanhas e pedestaes, toda uma Mechanica sumptuosa, apparelhos,
laminas, rodas, tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de
metaes...

Mas Jacintho batia nas almofadas do divan, onde se enterrára com um
modo cançado que eu não lhe conhecia:
--Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É necessario reatarmos estas
nossas vidas, tão apartadas ha sete annos!... Em Guiães, sete annos!
Que fizeste tu?
--E tu, que tens feito, Jacintho?
O meu amigo encolheu mollemente os hombros. Vivêra--cumprira com
serenidade todas as funcções, as que pertencem á materia e as que
pertencem ao espirito...
--E accumulaste civilisação, Jacintho! Santo Deus... Está tremendo, o
202!
Elle espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:
--Sim, ha confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal
apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistencias.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telephone. E
emquanto o meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente
«Está lá?--Está lá?», examinei curiosamente, sobre a sua immensa
mesa de trabalho, uma estranha e miuda legião de instrumentosinhos de
nickel, d'aço, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes,
com ganchos, com dentes, expressivos todos, de utilidades misteriosas.
Tomei um que tentei manejar--e logo uma ponta malevola me picou um
dedo. N'esse instante rompeu d'outro canto um «tic-tic-tic» açodado,
quasi ancioso. Jacintho acudiu, com a face no telephone:
--Vê ahi o telegrapho!... Ao pé do divan. Uma tira de papel que deve
estar a correr.
E, com effeito, d'uma redôma de vidro posta n'uma columna, e
contendo um apparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como
uma tenia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu,

homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul,
annunciava ao meu amigo Jacintho que a fragata russa Azoff entrára em
Marselha com avaria!
Já elle abandonára o telephone. Desejei saber, inquieto, se o
prejudicava directamente aquella avaria da Azoff.
--Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma noticia.
Depois, consultando um relogio monumental que, ao fundo da
Bibliotheca, marcava a hora de todas as Capitaes e o curso de todos os
Planetas:
--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens ahi os jornaes de Paris, da noite; e os de Londres,
d'esta manhã. As Illustrações além, n'aquella pasta de couro com
ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava á minha profanidade
serrana todos os gostos d'uma iniciação. Aos lados da cadeira de
Jacintho pendiam gordos tubos acusticos, por onde elle decerto soprava
as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões tumidos e
molles, colleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra á
maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu
verniz como na agua d'um
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