cançados, transbordando de
vestidos claros.
--Aqui tens tu, Zé Fernandes, (começou Jacintho, encostado á janella do mirante) a
theoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre
natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas distinguir além, atravez da Avenida,
n'aquella loja, uma vidraça alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os
dois vidros simples d'um binoculo de corridas, percebo, por traz da vidraça, presuntos,
queijos, boiões de gelêa e caixas de ameixa sêcca. Concluo portanto que é uma mercearia.
Obtive uma noção; tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça,
uma vantagem positiva. Se agora, em vez d'estes vidros simples, eu usasse os do meu
telescopio, de composição mais scientifica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canaes, o recorte dos golphos, toda a geographia d'um astro que
circula a milhares de leguas dos Campos Elyseos. É outra noção, e tremenda! Tens aqui
pois o olho primitivo, o da Natureza, elevado pela Civilisação á sua maxima potencia de
visão. E desde já, pelo lado do olho portanto, eu, civilisado, sou mais feliz que o
incivilisado, porque descubro realidades do Universo que elle não suspeita e de que está
privado. Applica esta prova a todos os orgãos e comprehendes o meu principio.
Emquanto á intelligencia, e á felicidade que d'ella se tira pela incançavel accumulação
das noções, só te peco que compares Renan e o Grillo... Claro é portanto que nos
devemos cercar de Civilisação nas maximas proporções para gosar nas maximas
proporções a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?
Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grillo; nem eu
percebia que vantagem espiritual ou temporal se côlha em distinguir atravez do espaço
manchas n'um astro, ou atravez da Avenida dos Campos Elyseos presuntos n'uma vidraça.
Mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um espirito do conceito onde elle
encontra segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o collete, e lançando um
gesto para o lado dos cafés e das luzes:
--Vamos então beber, nas maximas proporções, brandy and soda, com gelo!
Por uma conclusão bem natural, a ideia de Civilisação, para Jacintho, não se separava da
imagem de Cidade, d'uma enorme Cidade, com todos os seus vastos orgãos funccionando
poderosamente. Nem este meu super-civilisado amigo comprehendia que longe de
Armazens servidos por tres mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergeis e
lezirias de trinta provincias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fabricas
fumegando com ancia, inventando com ancia; e de Bibliothecas abarrotadas, a estalar,
com a papelada dos seculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima,
de fios de telegraphos, de fios de telephones, de canos de gazes, de canos de fezes; e da
fila atroante dos omnibus, tramways, carroças, velocipedes, calhambeques, parelhas de
luxo; e de dois milhões d'uma vaga humanidade, fervilhando, a offegar, atravez da
Policia, na busca dura do pão ou sob a illusão do gozo--o homem do seculo XIX podesse
saborear, plenamente, a delicia de viver!
Quando Jacintho, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os lilazes, me
desenrolava estas imagens, todo elle crescia, illuminado. Que creação augusta, a da
Cidade! Só por ella, Zé-Fernandes, só por ella, póde o homem soberbamente affirmar a
sua alma!...
--Oh Jacintho, e a religião? Pois a religião não prova a alma?
Elle encolhia os hombros. A religião! A religião é o desenvolvimento sumptuoso de um
instincto rudimentar, commum a todos os brutos, o terror. Um cão lambendo a mão do
dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote, já constitue toscamente um devoto, o
consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribue o céo ou o inferno!...
Mas o telephone! o phonographo!
--Ahi tens tu, o phonographo!... Só o phonographo, Zé Fernandes, me faz
verdadeiramente sentir a minha superioridade de sêr pensante e me separa do bicho.
Acredita, não ha senão a Cidade, Zé Fernandes, não ha senão a Cidade!
E depois (accrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessaria á vida como o
calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas
massas do casario de Paris, dois milhões de sêres arquejando na obra da Civilisação (para
manter na natureza o dominio dos Jacinthos!) sentia um socego, um conchego, só
comparaveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedario, e
avista a longa fila da caravana marchando, cheia de lumes e de armas...
Eu murmurava, impressionado:
--Caramba!
Ao contrario no campo, entre a inconsciencia e a impassibilidade da Natureza, elle tremia
com o terror da sua fragilidade e da sua solidão. Estava ahi como perdido n'um mundo
que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.