Uma família ingleza | Page 7

Júlio Dinis
de desgosto
d'aquelles bonitos labios, o que devéras o magoava.
Nem menos o affligiriam os remorsos, se procurasse subtrahir-se á pena,
não denunciando o delicto. A consciencia costumava censurar-lhe
tambem estas faltas, nas raras vezes que as commettia.
Jenny, igualmente attendida pelo irmão e pelo pae, servia-se d'esta
duplicada influencia para harmonisar toda a familia, nos momentos de
receiada discordia.
Com uma palavra extinguia qualquer irritação, que as extravagancias
de Carlos podessem ter produzido no animo de Mr. Richard; com outra
dissipava no irmão as menores tendencias á insurreição, tão naturaes á
idade e temperamento d'elle contra alguma medida repressiva, posta, de
quando em quando, em pratica pelo pae, como em ultimo recurso.
Frequentes vezes o pequeno erario de Jenny abrira-se a solver dividas,
imprudentemente contrahidas por Carlos, e a remediar todas as más
consequencias das suas leviandades. Estava sempre prompta a
advogar-lhe os pleitos, a minorar-lhe as culpas.
Mas tambem o que ella não conseguisse de Carlos, ninguem mais na

terra o conseguiria.
Deixar adivinhar desejos, era formular pedidos; uma supplica,
timidamente expressa, valia por uma ordem imperiosa. E comtudo
Jenny nunca procurava tornar apparente este predominio; antes se
esforçava por o dissimular.
Conhecendo, mais por muito reflectir do que por experiencia, que não a
tinha, os mil mysterios e caprichos do coração humano, toda a sua
admiravel diplomacia feminina estava em saber fazer-se obedecida,
brincando; em aceitar e agradecer, como concessões espontaneas, o que
lhe dizia a consciencia ser o resultado de suas insinuações e pedidos.
Desenvolvia-se de ordinario uma perfeita tactica, e engenhosamente
tecida da parte de Jenny, em quasi todas estas conferencias intimas
entre os dois irmãos.
Virtuosa e sympathica hypocrisia, com que Jenny, para dominar, se
humilhava!
Quando os anjos nos imitam na dissimulação, ainda então não perdem a
sua candura. São sempre anjos. Roçam com as azas pelo lôdo do
mundo, mas levantam-se immaculados.
Quem ensinára a Jenny, cuja vida se deslisára quasi toda no tracto
intimo de sua pouca numerosa familia, esta sciencia do coração, que
dizem só adquirir-se no muito lidar com os homens e com o mundo? Já
o indicamos:--a sua indole pensativa, os seus habitos de reflexão. Mais
se aprende na leitura meditada de um só livro, do que no folhear
levianamente milhares de volumes. Assim tambem no estudo dos
caracteres. Observadores ha, que, após annos e annos gastos a viver
com os homens, morrem em ingenua ignorancia a respeito d'elles;
outros que, na solidão do gabinete, perscrutam no proprio coração os
segredos dos mais, decifram-os, porque, descobertas ahi as leis
principaes e communs a toda a natureza humana, facil é adivinhar
depois as secundarias, d'onde procedem as differenças. Surprende
devéras quando se vê saír d'esses cantos obscuros um homem a todos
desconhecido, e que a todos parece conhecer. Como e onde aprendeu

este homem tudo isto? Pela observação desapaixonada em si, ou,
quando muito, nos seus mais proximos; depois a intelligencia, vigorada
por este ensino, abalançou-se, guiada por vestigios na apparencia
insignificantes, a inducções fertilissimas.
Carlos não sabia resistir muito tempo á irmã. Sem suspeitar que cedia,
recuava passo a passo. Aproximava-se do fim, onde a habil contendora
o queria levar, e, ao attingil-o, ficava surprendido de haver realisado,
com tão pouco custo, suppostos sacrificios, cuja ideia só, momentos
antes, o tinha feito desanimar de emprehendel-os.
Por não differentes processos, cada dia se vergava, por assim dizer, ás
mãos de uma creança o caracter geralmente considerado inflexivel de
Mr. Richard Whitestone.
E com tal habilidade aprendera Jenny a occultar estas pequenas, mas
importantes victorias, que a todo o instante obtinha sobre os seus, que
mal vinha á ideia do bom gentleman, quando, muito convencido do que
dizia, se jactava de ser firme nas suas resoluções, e pouco propenso a
revogar projectos formados, que, n'aquelle mesmo momento talvez, lhe
estavam dando seus actos solemne desmentido.
Taes eram os principaes membros da familia Whitestone, com quem
travaremos mais intimo conhecimento nos varios capitulos d'esta
singelissima historia, em cujo decurso, desde já o declaramos, para não
alimentar illusorias esperanças, a acção prosegue desimpedida de
complicadas peripecias.

III
NA AGUIA D'OURO
Era uma das ultimas noites do carnaval de 1855.
Havia menos estrellas no céo, do que mascaras nas ruas. Fevereiro, esse
mez inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos
de mau humor; mas, embora; o folgazão entrudo ria-se de taes

severidades e dançava ao som do vento e da chuva, e sob o docel de
nuvens negras que se levantavam do sul. Graças á cheia do Douro, a
cidade baixa podia bem prestar-se n'aquella época a uma parodia do
carnaval veneziano.
Á porta dos theatros apinhava-se a multidão; os altos brados dos
vendedores de senhas e os agudos falsetes dos mascarados atordoavam
os ouvidos. Dos cabides dos guarda-roupas, provisoriamente armados
nas lojas circumvizinhas aos principaes salões de baile, pendiam
vestuarios correspondentes a
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