quem sobravam intelligencia, elegancia, tacto e brilho
mundanos para exercerem completamente a sua missão. Feijó era ha
mais de 20 annos ministro de Portugal na Scandinavia e ha muito
tempo tambem o decano do corpo diplomatico de Stockolmo. Falava a
lingua do paiz, conhecia toda a gente, era amigo do Rei e da familia
real, vivia rodeado das deferencias e sympathias devidas ao seu talento
e ao seu caracter, continuando e excedendo a tradição deixada pelo seu
espirituoso e lendario antecessor Sotto Mayor, a quem a Suecia
considerava, tal a sua popularidade, como um sueco honorario.
Madame Feijó era, uma vez ainda, como um raio do sol equatorial
n'aquellas sombrias regiões polares. A alegria e a vida da sociedade de
Stockolmo eram, em boa parte, obra sua. Toda a cidade a chorou,
sentindo a perda irreparavel. O seu enterro foi uma homenagem
imponente em que as flores mandadas pelos reis e principes das tres
côrtes da Scandinavia se misturavam com as flores do povo da pequena
e graciosa capital sueca.
O meu querido amigo, apesar da profundeza e intensidade da sua dôr,
sentiu chegar até ella as lagrimas e os carinhos de tantos corações e não
poude deixar de impressionar-se com as provas de respeitosa e terna
consideração de que todo um povo estrangeiro o rodeava em tão
amarga hora. Mas não tirou d'essas homenagens o mais tenue balsamo
para a chaga em que se convertera o seu coração. N'ellas viu apenas
que o encanto da sua querida mulher era tão amplo e universal que até
aos mais indifferentes attingia. Reconheceu, com paciencia e
lucidez--formas terriveis, que, algumas vezes, reveste o desespero--que
o seu lucto não era qualquer lucto e que Deus lhe destinara, depois de
uma ventura excepcional, uma penitencia e uma amargura da mesma
especie. E nada fez para escapar-lhes.
Tenho aqui as suas cartas, escriptas entre lagrimas; releio-as agora na
maior commoção, e n'ellas posso seguir, como a curva de uma ardente
febre, a historia completa da sua morte de amor. A ultima chegou só
hontem, como sobrenatural visita, já depois de fria e inerte a mão que a
traçou. Deverei ter escrupulo em citar aqui essas cartas? Não vejo, no
entanto, melhor maneira de render ao grande coração de Antonio Feijó
o preito que lhe devo. Não ha n'ellas uma palavra que possa parecer
indiscreta perante a dupla campa de que ellas ficarão sendo o epitaphio.
Antonio Feijó tinha o habito supersticioso de escrever aos seus amigos
em papel de carta de formato e côr sempre differentes. A sua ultima
carta despreocupada e alegre é de 28 de fevereiro de 1914 e está
escripta, como que por estranho presentimento, em papel côr de rosa.
Nunca mais tive outra do mesmo humor ou da mesma côr. A carta
seguinte, datada de 20 de abril, é amarella, côr de outomno e de morte,
e traz as primeiras apprehensões duradouras sobre o estado de saude de
sua mulher, que, mezes antes, já lhe dera alguns passageiros cuidados.
Mas desde essa data nunca mais houve paz na sua vida. Folheemos
devagar essa amarga correspondencia:
_18 de julho de 1914_: «Tenho tardado em dar-lhe noticias minhas,
porque, no estado de espirito em que ando, não queria affligir as suas
primeiras horas do Rio de Janeiro com lamentações e amarguras, a que
o seu coração amigo não póde dar remedio. A minha querida doente vai
melhor, já póde sair, já quasi póde fazer a sua vida habitual. Mas... este
_mas_ é que é a minha tortura de todos os instantes. Qualquer que seja
a natureza e gravidade da doença, as recaidas anteriores não me dão a
menor garantia para o futuro. É mais que provavel que a doença se
reproduza. Não sei o que ha de ser de mim. A _Imitação de Christo_,
que eu leio assiduamente, diz que _à chaque jour suffit sa peine_; mas
eu estou longe de ser um bom christão, e a resignação é uma virtude
que Deus só concede aos eleitos.»
Sobreveio a grande guerra, que ruge e estrondeia tão proxima, e que
absorve o tempo e agita o espirito do diplomata. Mas, entre as suas
occupações e responsabilidades do momento, instala-se logo a afflicção
intima. Em 23 de outubro escreve-me:
«De saude vamos indo, graças a Deus; mas, sempre naquella
preoccupação de que lhe tenho falado, não consigo horas de paz, já não
digo perfeita, mas resignada. O futuro, de facto, na nossa idade, ou
antes na minha, são apenas 24 horas, como V. diz; mas, 24 horas ou
minutos que sejam, todos nós ambicionamos passal-as
tranquillamente.»
A 1 de janeiro de 1915, dando-me as boas festas, accrescenta logo:
«Sinto-me num estado de espirito tão desolado e abatido que nem
posso conversar á vontade com os amigos mais queridos. A Mercedes
anda outra vez doente e eu estou
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