d'ella, ou antes confirmei a sympathia que ella me tinha presa desde que a vi, pela primeira vez, dous annos antes, n'umas ferias grandes. N?o lhe disse quasi nada. Eu era rapaz de dezoito annos, e, aos dezoito annos, um mo?o d'aldêa tem o cora??o acanhado, e córa facilmente, quando encontra os olhos d'uma mulher, supposto que os veja constantemente em sonhos. A rapariga chamava-se Miquelina; isto n?o faz ao caso; mas sempre te digo que nunca suppuz poder pronunciar este nome sem lagrimas... O que é o tempo!...
Combinamos partir juntos de Villa-Real. N?o recordo na minha vida um dia mais feliz do que o dia da nossa partida! A familiaridade animava-me a dizer algumas palavras d'aquellas que nunca exprimem sen?o a sombra do sentimento. Miquelina corava, mas nem por isso sustinha as redeas do cavallo para esperar a avó e o pai, que vinham alguns passos distantes.
Teriamos andado legua e meia, quando o macho em que vinha montada a velha tomou susto d'um tiro, que se deu ao lado da estrada, recuou, e deu em terra com a pobre senhora. Acudimos todos.
Encontramos-lhe uma fractura profunda na cabe?a, e uma perna quebrada. Perguntamos se d'alli perto haveria uma casa onde nos recolhessemos. Encaminharam-nos a Alpedrinha, e a casa era a do padre onde me encontraste.
O acolhimento que nos deram foi excellente. Encontrei ahi o irm?o do abbade que era meu contemporaneo em Coimbra. Os facultativos disseram que era impossivel continuar jornada, e ahi ficamos vinte dias.
N'este espa?o de tempo, sonhei a felicidade, por que hoje sei que n?o existe a realidade d'esses sonhos. Fui muito feliz, senti-me poeta, idealisei á sombra de Miquelina cousas e pessoas que nunca tiveram sen?o materia vilissima para as aspira??es do poeta. Em fim, meu caro, cheguei a recuperar a fé perdida nas cousas da Providencia, porque me parecia impossivel tanta felicidade sem consentimento especial da Providencia.
Disse a Miquelina tudo que humanamente póde dizer-se. Traduzi-lhe em palavras os extasis, que as n?o tinham. Interessei-a na comprehens?o da minha alma, e arranquei-lhe uma palavra, que mil vezes lhe morrera nos labios, como queimada pelo ardor do pejo. Quando ella me disse ?amo-o? se n?o endoudeci de contentamento, é porque a disposi??o do meu cerebro é invulneravel aos golpes da demencia. Hoje rio-me d'isto, e tu, se te n?o ris, agouro-te que n?o poderás dizer o mesmo a respeito da tua cabe?a, passados alguns annos.
--Porque?
--Porque das duas uma: ou doudo, ou cynico. Tomar a serio a sociedade é endoudecer. Viver com ella em boa paz é escarnecel-a. Ou doudo ou cynico. N?o enlouqueci; mas depravei-me. Este escarneo, que indistinctamente voto a tudo, é a nega??o da piedade para todas as d?res nobres, e a do odio para todos os prazeres infames. N?o me espanta nada. Aperto a m?o do mais corrupto, e a do mais virtuoso com a mesma gra?a. Recebo todos os desaforos como factos consumados. N?o dou dez reis pela virtude dos missionarios do Jap?o, nem daria cinco de volta se elles me trocassem a sua fé pela minha illustrada impiedade. Eu e elles somos bons, ou maus: como quizerem. Eu acho que todos somos excellentes filhos de Deus, e Deus, que nos conserva, lá sabe a raz?o porque o faz...
--Tu n?o sentes o que dizes...
--Estás a brincar comigo!... Pois n?o sinto o que digo?! Tu n?o vês o que está dentro d'este homem, nem pódes ainda ajustar á face do cadaver a mascara que o retrate...
--Mas é possivel ser-se o que tu és?!
--Se é!... Se me n?o tivesses interrompido, já sabias a raz?o porque o sou... Nada de interrup??es... Se come?o a divagar, digo diabruras, perco-me em abstrac??es, que te h?o-de parecer pretenciosas, e lá vai a historia...
--Palavra, que n?o te interrompo...
--Quando sahimos de Alpedrinha, as minhas intimidades com Miquelina eram já suspeitas ao pai, que n?o se entremettia paternalmente no negocio. Sabes que eu tenho uma soffrivel casa, e Miquelina n?o era muito mais rica. Era possivel, e até vantajoso um casamento. Murmurou-se n'este assumpto em casa do padre, e eu fui consultado por elle.
Isto arrefeceu-me um pouco. N?o queria que me viessem t?o cedo direitos ao materialismo. A pequena, porém, n?o tinha culpa. Eram cousas da velha, que quebrára a perna, mas ficára com a alma inteira para seguir o recto caminho, a logica implacavel do namoro, banhos, casamento, filhos, aborrecimento, barrete de dormir, catarrho, cangalhas no nariz, e rheumatismo.
Eu amava verdadeiramente Miquelina. Instado pelas perguntas do officioso abbade, respondi que me casaria um anno depois, porque n?o queria dar tal passo sem o consentimento d'um tio, que f?ra receber ao Brazil uma heran?a, que viria augmentar consideravelmente a minha casa.
Ficamos n'isto.
Tres vezes por semana, durante os dous mezes de ferias, visitei Miquelina, e revalidei os meus votos, porque esta paix?o n?o era das que fogem quanto mais faceis se aproximam. A
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