Raios de extincta luz | Page 4

Antero de Quental

a ideia do suicidio que involuntariamente se tornou effectiva. A sua
obra é mais um documento psychologico do que um producto esthetico;
e n'este sentido será estudada e confrontada com a de outros genios
egualmente desgraçados.
CARTA AUTOBIOGRAPHICA
*DIRIGIDA AO PROFESSOR WILHELM STORCK*
Traductor dos _Sonetos completos_
Ponta Delgada (ilha de S.
Miguel, Açores),
14 de maio de 1887.
Ex.^{mo} Snr.
Só agora me chegou ás mãos a sua estimada carta de 23 de abril ultimo,

pelo facto de me encontrar, ha dois mezes, n'esta ilha (que é a minha
patria) trazido aqui por urgentes negocios de familia. A demora das
communicações com o continente explica este atrazo.
Agradeço a v. ex.^a as amaveis e para mim tão honrosas expressões de
sua carta, e nada me póde ser, como poeta e como homem, mais grato
do que o apreço que um tal mestre e critico manifesta pelas minhas
composições, ao ponto de querer ser meu interprete e introductor junto
do publico o mais culto do mundo e que mais direito tem a ser exigente.
Discipulo da Allemanha philosophica e poetica, oxalá que ella receba
com benignidade essas pobres flôres, que uma semente sua, trazida
pelo vento do seculo, faz desabrochar n'este solo pouco preparado.
Qualquer que seja a sua fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom
e gentil espirito, que generosamente me toma pela mão, para me
apresentar.
As informações biographicas e bibliographicas que v. ex.^a me pede,
podem reduzir-se ao seguinte: nasci n'esta ilha de S. Miguel,
descendente de uma das mais antigas familias dos seus colonisadores,
em abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45 annos. Cursei,
entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ella bacharel
formado em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito
que me interessou e absorveu durante aquelles annos, tendo sido e
ficando um insignificante legista.
O facto importante da minha vida, durante aquelles annos, e
provavelmente o mais decisivo d'ella, foi a especie de revolução
intellectual e moral que em mim se deu, ao sahir, pobre creança
arrancada do viver quasi patriarchal de uma provincia remota e
immersa no seu placido somno historico, para o meio da irrespeitosa
agitação intellectual de um centro, onde mais ou menos vinham
repercutir-se as encontradas correntes do espirito moderno. Varrida
n'um instante toda a minha educação catholica e tradicional, cahi n'um
estado de duvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espirito
naturalmente religioso, tinha nascido para crêr placidamente e obedecer
sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado
terrivel de espirito, partilhado mais ou menos por quasi todos os da

minha geração, a primeira em Portugal que sahiu decididamente e
conscientemente da velha estrada da tradição.
Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara
a natureza, o acordar das paixões amorosas proprias da primeira
mocidade, a turbulencia e a petulancia, os fogachos e os abatimentos de
um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita
falta de paciencia e methodo, ficará feito o quadro das qualidades e
defeitos com que, aos 18 annos, penetrei no grande mundo do
pensamento e da poesia.
No meio das cahoticas leituras a que então me entregava, devorando
com egual voracidade romances e livros de sciencias naturaes, poetas e
publicistas e até theologos, a leitura do _Fausto_ de Goethe (na
traducção franceza de Blaze de Bury) e o livro de Rémusat sobre a
nova philosophia allemã exerceram todavia sobre o meu espirito uma
impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado
para o _Germanismo_; e, se entre os francezes, preferi a todos
Proudhon e Michelet, foi sem duvida por serem estes dois os que mais
se resentem do espirito de Alem-Rheno. Li depois muito de Hegel, nas
traducções francezas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi
allemão); não sei se o entendi bem, nem a indepencia do meu espirito
me consentia ser discipulo: mas é certo que me seduziam as tendencias
grandiosas d'aquella estupenda synthese. Em todo o caso o
Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações
philosophicas, e posso dizer que foi dentro d'elle que se deu a minha
evolução intellectual.
Como accommodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do
Estado prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet,
Quinet e Proudhon? Mysterios da incoherencia da mocidade! O que é
certo é que, revestido com esta armadura mais brilhante do que solida,
desci confiado para a arêna: queria reformar tudo, eu que nem sequer
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