Panegyrico de Luiz de Camões | Page 5

José Maria Latino Coelho
e sem commercio fraternal.
D'esta prodigiosa Renascen?a, em que a moderna christandade tornou a viver no espirito e no genio da antiguidade, fomos nós os mais activos e fecundos cooperadores. A outros coube a gloria de comprehender primeiro e divulgar as formosas manifesta??es da intelligencia e da imagina??o entre os antigos; de recompor as estatuas, onde o ideal quasi se confundia com o divino, de reconstruir os sumptuosos monumentos, de evocar das ruinas o mundo classico, e ao bafejo da paciente erudi??o fazel-o resurgir na apparencia da sua eterna belleza e perfei??o. Mas em quanto os outros recompunham a antiguidade, nós mais audazes e felizes do que elles, alcan?avamos completal-a e corrigil-a, penetrar onde ella n?o chegou, e tornar mil vezes mais intensa a sua luz, enfeixando com ella a que em remotas e sobrehumanas excurs?es se reflectiu na lamina das espadas gloriosas, e nas colubrinas e bombardas dos nossos gale?es.
Fizeram elles o renascimento do passado, dispertando-o do seu tumulo. Nós fomos acordar o futuro das na??es no ber?o onde nasce a aurora. Fizeram elles resurgir as tradi??es da Grecia e Roma. Nós fizemos nascer e avigorar-se o espirito da humanidade.
Os outros fizeram a sciencia da antiguidade, acurvados nos pulverulentos manuscriptos e nas reliquias já truncadas da arte, da sciencia e da poesia. Nós fizemos a doutrina, que se accumula navegando e combatendo, a perigosa erudi??o, que se compra com sangue derramado, e enla?ámos aos loiros da sciencia as palmas triumphaes.
Para entalhar no bronze da epopéa os feitos que resumem a vida nacional, nasceu Cam?es.
Quem era? D'onde veiu? Onde nasceu? Onde passou a puericia? Onde aprendeu na adolescencia os dois amores, que lhe exal?aram o espirito, cravando-lhe de espinhos o cora??o,--o amor da patria, que elle idolatrou mais que ninguem,--o amor da mulher, que mais do que nenhum poeta lyrico elle soube divinisar?
A vida do Cam?es é em quasi todos os seus successos uma lenda, ou um mysterio. Do poeta conhecemos perfeitamente o aspecto, em que se volta para nós e para a patria. Ignoramos quasi inteiramente o que se occulta nas escuras profundezas do cora??o e da existencia individual. é como estes resplendentes corpos celestes, de quem apenas rastreamos a luz e o esplendor, sem ao certo comprehender o que está por baixo da luminosa superficie. Contemplamos no Cam?es reflectida com toda a sua clara intensidade a vida nacional. Acostumámo-nos a vêr e admirar no seu espirito a imagem heroica do povo portuguez. Os loiros, que lhe exornam a fronte, s?o tambem os laureis que enramaram em seus triumphos a patria, quando era gloriosa e invejada. A sua alma é a alma da na??o. No seu poema n?o respira apenas o estro de um cantor, palpita o cora??o de Portugal. é preciso que haja o que quer que seja de vago, impessoal e indeciso n'esta figura grandiosa, que tem á cinta o proprio gladio da na??o, e desfere no seu plectro, n?o os sons da sua propria inspira??o, mas os hymnos collectivos entoados por todo um povo á sua grandeza e á sua gloria. O Cam?es n?o é apenas um poeta, é um c?ro triumphal, em que as vozes de muitas gera??es, na propria sauda??o dos seus heroicos feitos, se conglobam nos accentos de uma voz predestinada.
S?o mal delineados, nebulosos, os contornos biographicos do Cam?es. N?o se sabe ao certo quando nasceu, porque n'estas imagens e personifica??es da vida nacional, é bem que nos possamos illudir, suppondo que andaram largos tempos voejando antes que come?assem a luzir. Ignora-se a terra em que nasceu. Em Lisboa? Em Coimbra? Em Santarem? Ninguem o pode á justa discriminar. E é bem que assim acontecesse, para que nenhuma povoa??o se possa gloriar, de que o poeta lhe pertence a melhor titulo do que a toda a patria, que illustrou. Perguntam-nos onde o Cam?es viu a primeira luz? Respondemos e basta: Em Portugal. Que nos importa discernir se era vulgar ou generoso o sangue do poeta? Os monarchas da intelligencia n?o carecem de tronco e dynastia. N?o tem pelo espirito nem antecessores nem descendentes. N?o releva o inquirirmos d'onde veem, já que sabemos aonde v?o. Nascem da humanidade e v?o para a gloria. Nascem do pó terreno e mundanal e caminham luminosos á divina immortalidade. Sabemos do Cam?es que foi soldado valentissimo entre os mais esfor?ados e briosos; sabemos que foi a mais subida intelligencia em nossa terra, o primeiro épico moderno. Sabemos que alcan?ou conciliar em harmonica uni?o as gra?as e formosuras da mais solta e inventiva imagina??o, com as doutrinas mais severas da sciencia no seu tempo. Sabemos que em Africa militou, para que seguisse em tudo as mesmas sendas, por onde a gloria portugueza transitara. Sabemos que invejas, e malqueren?as, e damnadas ten??es, como elle diz, lhe mesclaram na vida aos jubilos e aos extasis da nativa inspira??o, as tristezas e os
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 10
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.