Pátria | Page 7

Junqueiro Guerra
REI:
Assinarei... Deixem ficar.
CIGANUS:
E emquanto às convulsões do leão popular,
Como diria o nobre
duque, afoitamente
Respondo pelo bicho: um cão ladrando à gente:

Dobrei guardas, minei as pontes à cautela,
E fica a artilharia em volta
à cidadela.
Não há p'rigo nenhum. Durma El-rei sem temor.
Boa
noite, Senhor...
MAGNUS, _curvando-se até ao chão_:

Meu Senhor!
OPIPARUS:
Meu Senhor...
Saem os três.
MAGNUS, _vai pensando_:
Ora, se o filho do alfaiate qualquer dia
Inaugurava ainda a quinta
dinastia!...
Eu sentado no trono!... Eu rei de Portugal!!...
Que, rei ou
presidente, emfim é tudo igual...
Muita finura agora e muita
vigilância,
Observando e aguardando as coisas a distância!...

Magnus! lume no ôlho e não te prejudiques...
Eu suceder, caramba! a
D. Afonso Henriques!!...
SCENA III
*O rei, só*
O temporal aumenta. Relâmpagos e trovões.
O REI:
Não me lembra de ver uma tormenta assim!...
Que demónio de
noite!... Ando fora de mim,
Desvairado... Um veneno oculto me
afogueia,
Que há três dias que trago uma cabeça alheia
Nestes
ombros... Que inferno!... É esquisito... é esquisito!... Foi beberagem
má... droga horrenda... acredito!
Uns vágados de louco, um frenesim
medonho...
Sonharei, porventura, e será tudo um sonho?!...

Acordado ando eu, acordado a valer,
Que há três noites não pude
ainda adormecer!...
Peçonha?... não!... A causa disto... a causa é o
doido
O raio do fantasma, êsse maldito doido
Que me persegue!...
tenho mêdo... e vergonha em dizê-lo!... E depois o cronista-mór, um
pesadelo
Ambulante, um maluco agoireiro e scismático,
Com

aquelas visões estranhas de lunático,
Faz-me mal... faz-me mal... Que
o leve o diabo... O certo
É que há dentro de mim desarranjo
encoberto...
Uma insónia danada... um nervoso... um fastio...

Misantropia tal que não bebo, nem rio,
Nem de toiros me lembro
emfim, nem de ir à caça!
Mau sangue... Árvore má... Podre... podre...
É de raça!...
UMA VOZ TRAGICA, _na escuridão_:
Ai, na batalha destroçado,
Ai, na batalha destroçado,
Rôta a
armadura, ensangùentado,
Debaixo duma árvore funesta
Fui-me
deitar, fui-me deitar... dormir a sésta...
Fui-me deitar... dormi...
dormi...
Endoudeci, enlouqueci
Debaixo duma árvore funesta!...
Uivam os cães, espavoridos e furiosos.
O REI:
O doido! o doido! o doido!... Há três noites a fio
Que êste vélho
alienado, horroroso e sombrio,
À volta do palácio, ave negra d'azar,

Anda a cantar!... anda a cantar!... anda a cantar!...
Indo ao balcão:
Ei-lo!
(Ao clarão dum relâmpago, destaca-se, de súbito, fronteiro ào castelo o
vulto trágico do doido. Um gigante. Rôto, cadavérico, longa barba
esquálida, olhos profundos de alucinado, agitando no ar um bordão em
círculos de agoiro, cabalísticos. O manto esvoaça-lhe tumultuoso,
restos duma bandeira vélha ou dum sudário).
Morro de mêdo!... Há não sei que de extravagante,
De inquietador, na
voz, nas feições, no semblante
Dêste doido... Será um doido
porventura?...
Mal a sua voz acorda, rouca, a noite escura,
Logo os
cães a ladrar, a ladrar e a gemer,
Como se entrasse a morte aqui sem

eu a ver!...
Que raio de fantasma!... É coisa de bruxedo...
Não ando
em mim... não ando bom, tremo de mêdo...
Esquisito!...
Sentando-se ao fogão:
Ora adeus! É do tempo... é da lua...
Nervoso... Passa... Mas, se o
diabo continua
Com as trovas de agoiro, eu forneço-lhe o mote,

Mandando-o escorraçar a cacete e a chicote.
Vendo o pergaminho sôbre a mesa:
O tratado... Uma léria... Enfastia-me já...
Mais preto menos preto, a
mim que se me dá?!
Por via agora duma horrenda pretalhada
Mil
barafundas e alvorotos... Que massada!
Que massada!... Fazem-me
doido, não resisto...
Desenrolando o pergaminho:
É assiná-lo, e pronto! acabemos com isto!
Lendo alto:
«Eu, rei de Portugal, súbdito inglês, declaro
Que à nobre imperatriz
das Índias e ao preclaro
Lord Salisbury entrego os restos duma
herança
Que dum povo ficou à casa de Bragança,
Dando-me, em
volta, a mim e ao príncipe da Beira
A desonra, a abjecção, o trono... e
a Jarreteira.»
Cáspite! um pouco forte... Ora adeus!... uma história...

Chalaças... Devo a c'roa à raínha Vitória!
O DOIDO, _na escuridão_:
Tive castelos, fortalezas pelo mundo...
Não tenho casa, não tenho
pão!...
Tive navios... milhões de frotas... Mar profundo,
Onde é que
estão?... onde é que estão?!...
Tive uma espada... Ah, como um raio,
ardia, ardia
Na minha mão!...
Quem ma levou? quem ma trocou,
quando eu dormia,
Por um bordão?!...
E tive um nome... um nome

grande... e clamo e clamo,
Que expiação!
A perguntar, a perguntar
como me chamo!...
Como me chamo? Como me chamo?...
Ai! não
me lembro!... perdi o nome na escuridão!...
O REI, _desvairado, erguendo-se_:
O doido!... Aquela voz de fantasma titânico
Gela-me o sangue e
petrifica-me de pânico!
Porque?... Ignoro... O mesmo instinto
singular,
Que faz ladrar os cães, mal o ouvem cantar...
Parece-me
um algoz, um carrasco sangrento
D'alêm campa, a marchar no escuro
a passo lento,
Direito a mim!... Lá vem!... lá vem vindo... não tarda!...

Quem me defende?... a minha côrte? a minha guarda?
A minha
guarda!... a minha côrte!... Ah, bons amigos,
Como hei-de crer em
saltimbancos e em mendigos,
Sentando-se ao fogão, junto dos cães:
Se nem mesmo nos cães tenho confiança já!...
Os três cães, agachando-se-lhe aos pés, acariciam-no e lambem-no.
O REI, _enxotando Iago bruscamente_:
Iago... Iago!... Então... basta de festas, vá!...
Safado! cachorro
imundo!... Olhem o odre
De gordura, já meio leso e meio podre!

Biltre! À fôrça de comesainas e de enchentes
Emprenhou-te a
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