Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 9

Antero de Quental
esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...
Por isso vago sem conforto e
incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e
uma alma moribunda.»
E os tres, unindo a voz n'um ai supremo,
E deixando pender as mãos
cançadas
Sobre as armas inuteis e quebradas,
N'um gesto inerte de
abandono extremo,
Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidavel,

Sumiram-se na selva impenetravel
E no palor da noite silenciosa.
ENTRE SOMBRAS
Vem ás vezes sentar-se ao pé de mim
--A noite desce, desfolhando as
rosas--
Vem ter commigo, ás horas duvidosas,
Uma visão, com azas
de setim...
Pousa de leve a delicada mão
--Rescende amena a noite socegada--

Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido
coração...
E diz-me essa visão compadecida
--Ha suspiros no espaço vaporoso--

Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste
a tua vida?
Vem commigo! Embalado nos meus braços
--Na noite funda ha um
silencio santo--
N'um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a
dormir esses espaços...
Porque eu habito a região distante
--A noite exhala uma doçura
infinda--
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual
brilha constante...
Habito ali, e tu virás commigo
--Palpita a noite n'um clarão que

offusca--
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e
alivio, pobre amigo...
Assim me fala essa visão nocturna
--No vago espaço ha vozes
dolorosas--
São as suas palavras carinhosas
Agua correndo em
crystalina urna...
Mas eu escuto-a immovel, somnolento
--A noite verte um desconsolo
immenso--
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e
tenebroso o pensamento...
Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
--A noite é erma como campa
enorme--
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem
sabes que estou morto!
HYMNO DA MANHÃ
Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céo, pura e
vibrante,
E enche de força o coração triumphante
Dos que ainda
esperam, luz immaculada!
Mas a mim pões-me tu tristeza immensa
No desolado coração. Mais
quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitaria, immovel,
densa,
O vacuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem susurra o
vento,
E adormece o proprio pensamento,
Do que a luz matinal... a
luz bemdita!
Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso
inalteravel
E do esquecimento inviolavel,
Que anceia o mundo,
farto de soffrer...
Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o
pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento.
E olvida, como
quem está já morto...

E, interrogando intrepido o Destino,
Como reu o renega e o
condemna,
E virando-se, fita em paz serena
O vacuo augusto,
placido e divino...
Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas
transitorias.
Das paixões e das formas illusorias,
Onde sómente ha
dor e falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és symbolo tu? do eterno
engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil
malhas, mysteriosa!
Symbolo, sim, da universal traição,
D'uma promessa sempre
renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe
da Illusão...
Outros estendam para ti as mãos,
Supplicantes, com fé, com
esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas
e a luz dos dias vãos...
Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não
provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Porque nasce mais
um dia?
Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o
Universo
Ficasse inerte e eternamente immerso
Do possivel na
nevoa duvidosa!
O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a
consciencia,
D'uma eterna, incuravel impotencia,
Do insaciavel
desejo, que o devora!
De que são feitos os mais bellos dias?
De combates, de queixas, de
terrores!
De que são feitos? de illusões, de dores,
De miserias, de
maguas, de agonias!

O sol, inexoravel semeador,
Sem jamais se cançar, percorre o espaço,

E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes innumeras da
Dor!
Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como treme

Sob os ventos da vida e como geme
N'um susurro monotono e
plangente!
E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel
fecundidade,
Com a força e a subtil tenacidade
Invencivel das
plantas venenosas!
De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal...

Uma fragrancia morbida, mortal
Lhe reçuma da seiva peçonhenta...
E é esse aroma languido e profundo,
Feito de seducções vagas,
magneticas,
De ardor carnal e de attracções poeticas,
É esse aroma
que envenena o mundo!
Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, placida e
inflexivel,
As miserias da terra: e a hoste horrivel,
Enchendo de
clamor e horisontes.
Torva, cega, colerica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se á
pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre
e nunca extincta!
Quantos erguem n'esta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas
novas,
Pedindo a lucta e as formidaveis provas,
Alegres e crueis e
sem remorso,
Que esta tarde ha-de ver, no duro chão
Cahidos e sangrentos,
vomitando
Contra o céo, com o sangue miserando,
Uma extrema e
importante imprecação!
Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
Ha-de a noite encontrar, sós

e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lagrimas
caladas dos vencidos!
E porque? para que? para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexoravel,

Á vida incerta e á lucta
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