razão especulativa para a qual não ha limites.
O poeta é por isso um mystico, e o critico um philosopho. O
mysticismo e a metaphisica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a
vontade, o temperamento e a intelligencia, combatem-se, ás vezes
dilacerando-se. Eis ahi a explicação d'esta poesia que é o retrato vivo
do homem. O genio, esse _quid_ divinatorio, que não é honra para
nenhuma creatura possuir, porque só nos dá merecimento aquillo que
ganhámos á força de intelligencia e de vontade; o genio, que é uma
faculdade tão accidental como a côr dos cabellos, ou o desenho das
feições; o genio, que pode andar ligado a uma intelligencia mediocre,
mas que o não anda no caso de Anthero de Quental--é o predicado
particular e a chave do enygma d'este homem. O genio presuppõe a
intuição de uma verdade visceral ou fundamental da natureza. Essa
intuição, essa aspiração absorvente, é para o nosso poeta a synthese da
verdade racional ou positiva e do sentimento mystico: uma poesia que
exprima o raciocinio, ou antes uma philosophia onde caibam todas as
suas visões. O proprio do genio é querer realisar o irrealisavel; é ser
chimerico, no sentido critico da palavra, quando por chimera
entendemos uma verdade essencial que não pode todavia reduzir-se a
formulas comprehensiveis, ou uma cousa cuja realidade se sente, sem
se poder ver.
Dos aspectos quasi inexgotavelmente variaveis d'esta singular
phisionomia de homem, d'esta mistura excepcional de pensamentos e
de temperamentos n'um mesmo individuo, resulta porém um typo de
sinceridade e de rectidão mais singular ainda, porque mais facilmente
podia resultar d'ella um grande cynico. É sobretudo um stoico, sem
deixar de ter bastante de sceptico; é um mystico, mas com uma forte
dose de ironia e humorismo; e um mysanthropo, quando não é o
homem do trato mais affavel, da convivencia mais alegre; é um
pessimista, que todavia acha em geral tudo optimo. Intellectualmente é
a phisionomia mais dubia, complexa e contradictoria por vezes;
moralmente é o caracter mais inteiro e melhor que existe. A sua
intelligencia encontra-se permanentemente no estado de alguem que,
querendo ir para um sitio, resiste por não querer ao mesmo tempo, sem
todavia ter rasões bastantes para querer nem tambem para não querer.
O nucleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado praticamente
humano, está na energia do seu querer moral, e não na lucidez do seu
pensamento; embora tenha a pretenção de julgar que a sua vontade
obedece sempre á sua razão. É verdade que dentro de si tem
permanentemente um espelho facetado que representa e critíca as
modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa
faces de mais ás cousas, e tambem por vezes o cristal embacia. O que
nunca esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem
fundamentalmente bom.
A complexidade do seu espirito dá-lhe uma variedade de aptidões
singular. Conversador como poucos, facil, espontaneo, original e
suggestivo, ironico, humorista, espirituoso, descendo até á propria
_charge_, não ha ninguem como elle para soltar o carro da sua
phantasia critica na ladeira de uma these, e, explorando-a em todos os
sentidos, architectar uma theoria. Os seus opusculos em prosa (da
melhor prosa portugueza d'este tempo) têm em geral este caracter. São
logicos, são bem deduzidos--sem serem sufficientemente pensados. São
fructos da imaginação; são conversas escriptas, d'essas conversas que
durante horas seduzem os que o ouvem--porque é um _charmeur_.
Elle proprio se embriaga, não com as suas palavras, mas sim com
aquella theoria passageira que inventou _ad hoc_, e, quando alguem lhe
objecta um pequeno senão, todavia essencial ao seu edificio logico,
resiste, defende-se, irrita-se ás vezes, mas por fim é elle proprio que,
com um dito, desfaz toda a construcção. Seria um orador, um jornalista
de primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta,
ou antes de philosopho.
Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal
homem que Anthero de Quental é um assombro. Longe d'isso. A sua
força e a prodigalidade com que a natureza dotou o seu espirito; mas
essa força é uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e
por outro lado o raciocinio critico peia-lhe os vôos luminosos da
phantasia. Vê de mais para poder ser activo, ou não tem a energia
correspondente á sua visão. Se a tivesse, seria verdadeiramente um
assombro. A imaginação e a razão, irreductiveis nos cerebros humanos
com as circumvoluções limitadas que contêm, são egualmente
poderosas no seu cerebro para que qualquer d'ellas domine. Luctam em
permanencia, procurando entender-se, combinar-se, penetrar-se, e, no
desejo chimerico da synthese, desequilibram o homem, atrophiando-lhe
a energia activa. Ainda assim, felizes d'aquelles cuja inercia désse um
livro comparavel a este!
Mas é que as suas paginas foram escriptas com sangue e lagrimas! E
doe ver a vida do
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