Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 2

Antero de Quental

razão especulativa para a qual não ha limites.
O poeta é por isso um mystico, e o critico um philosopho. O
mysticismo e a metaphisica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a
vontade, o temperamento e a intelligencia, combatem-se, ás vezes
dilacerando-se. Eis ahi a explicação d'esta poesia que é o retrato vivo
do homem. O genio, esse _quid_ divinatorio, que não é honra para
nenhuma creatura possuir, porque só nos dá merecimento aquillo que
ganhámos á força de intelligencia e de vontade; o genio, que é uma
faculdade tão accidental como a côr dos cabellos, ou o desenho das
feições; o genio, que pode andar ligado a uma intelligencia mediocre,
mas que o não anda no caso de Anthero de Quental--é o predicado
particular e a chave do enygma d'este homem. O genio presuppõe a
intuição de uma verdade visceral ou fundamental da natureza. Essa
intuição, essa aspiração absorvente, é para o nosso poeta a synthese da
verdade racional ou positiva e do sentimento mystico: uma poesia que
exprima o raciocinio, ou antes uma philosophia onde caibam todas as
suas visões. O proprio do genio é querer realisar o irrealisavel; é ser
chimerico, no sentido critico da palavra, quando por chimera
entendemos uma verdade essencial que não pode todavia reduzir-se a
formulas comprehensiveis, ou uma cousa cuja realidade se sente, sem
se poder ver.
Dos aspectos quasi inexgotavelmente variaveis d'esta singular
phisionomia de homem, d'esta mistura excepcional de pensamentos e
de temperamentos n'um mesmo individuo, resulta porém um typo de

sinceridade e de rectidão mais singular ainda, porque mais facilmente
podia resultar d'ella um grande cynico. É sobretudo um stoico, sem
deixar de ter bastante de sceptico; é um mystico, mas com uma forte
dose de ironia e humorismo; e um mysanthropo, quando não é o
homem do trato mais affavel, da convivencia mais alegre; é um
pessimista, que todavia acha em geral tudo optimo. Intellectualmente é
a phisionomia mais dubia, complexa e contradictoria por vezes;
moralmente é o caracter mais inteiro e melhor que existe. A sua
intelligencia encontra-se permanentemente no estado de alguem que,
querendo ir para um sitio, resiste por não querer ao mesmo tempo, sem
todavia ter rasões bastantes para querer nem tambem para não querer.
O nucleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado praticamente
humano, está na energia do seu querer moral, e não na lucidez do seu
pensamento; embora tenha a pretenção de julgar que a sua vontade
obedece sempre á sua razão. É verdade que dentro de si tem
permanentemente um espelho facetado que representa e critíca as
modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa
faces de mais ás cousas, e tambem por vezes o cristal embacia. O que
nunca esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem
fundamentalmente bom.
A complexidade do seu espirito dá-lhe uma variedade de aptidões
singular. Conversador como poucos, facil, espontaneo, original e
suggestivo, ironico, humorista, espirituoso, descendo até á propria
_charge_, não ha ninguem como elle para soltar o carro da sua
phantasia critica na ladeira de uma these, e, explorando-a em todos os
sentidos, architectar uma theoria. Os seus opusculos em prosa (da
melhor prosa portugueza d'este tempo) têm em geral este caracter. São
logicos, são bem deduzidos--sem serem sufficientemente pensados. São
fructos da imaginação; são conversas escriptas, d'essas conversas que
durante horas seduzem os que o ouvem--porque é um _charmeur_.
Elle proprio se embriaga, não com as suas palavras, mas sim com
aquella theoria passageira que inventou _ad hoc_, e, quando alguem lhe
objecta um pequeno senão, todavia essencial ao seu edificio logico,
resiste, defende-se, irrita-se ás vezes, mas por fim é elle proprio que,
com um dito, desfaz toda a construcção. Seria um orador, um jornalista

de primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta,
ou antes de philosopho.
Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal
homem que Anthero de Quental é um assombro. Longe d'isso. A sua
força e a prodigalidade com que a natureza dotou o seu espirito; mas
essa força é uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e
por outro lado o raciocinio critico peia-lhe os vôos luminosos da
phantasia. Vê de mais para poder ser activo, ou não tem a energia
correspondente á sua visão. Se a tivesse, seria verdadeiramente um
assombro. A imaginação e a razão, irreductiveis nos cerebros humanos
com as circumvoluções limitadas que contêm, são egualmente
poderosas no seu cerebro para que qualquer d'ellas domine. Luctam em
permanencia, procurando entender-se, combinar-se, penetrar-se, e, no
desejo chimerico da synthese, desequilibram o homem, atrophiando-lhe
a energia activa. Ainda assim, felizes d'aquelles cuja inercia désse um
livro comparavel a este!
Mas é que as suas paginas foram escriptas com sangue e lagrimas! E
doe ver a vida do
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 30
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.