Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 9

Antero de Quental
Embalado nos meus bra?os?--Na noite funda ha um silencio santo--?N'um sonho feito só de luz e encanto?Transporás a dormir esses espa?os...
Porque eu habito a regi?o distante?--A noite exhala uma do?ura infinda--?Onde ainda se crê e se ama ainda,?Onde uma aurora igual brilha constante...
Habito ali, e tu virás commigo?--Palpita a noite n'um clar?o que offusca--?Porque eu venho de longe, em tua busca,?Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...
Assim me fala essa vis?o nocturna?--No vago espa?o ha vozes dolorosas--?S?o as suas palavras carinhosas?Agua correndo em crystalina urna...
Mas eu escuto-a immovel, somnolento?--A noite verte um desconsolo immenso--?Sinto nos membros como um chumbo denso,?E mudo e tenebroso o pensamento...
Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto?--A noite é erma como campa enorme--?Fito-a com olhos turvos de quem dorme?E respondo: Bem sabes que estou morto!
HYMNO DA MANH?
Tu, casta e alegre luz da madrugada,?Sobe, cresce no céo, pura e vibrante,?E enche de for?a o cora??o triumphante?Dos que ainda esperam, luz immaculada!
Mas a mim p?es-me tu tristeza immensa?No desolado cora??o. Mais quero?A noite negra, irm? do desespero,?A noite solitaria, immovel, densa,
O vacuo mudo, onde astro n?o palpita,?Nem ave canta, nem susurra o vento,?E adormece o proprio pensamento,?Do que a luz matinal... a luz bemdita!
Porque a noite é a imagem do N?o-Ser,?Imagem do repouso inalteravel?E do esquecimento inviolavel,?Que anceia o mundo, farto de soffrer...
Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,?O nada universal o pensamento,?E despreza o viver e o seu tormento.?E olvida, como quem está já morto...
E, interrogando intrepido o Destino,?Como reu o renega e o condemna,?E virando-se, fita em paz serena?O vacuo augusto, placido e divino...
Porque a noite é a imagem da Verdade,?Que está além das cousas transitorias.?Das paix?es e das formas illusorias,?Onde sómente ha dor e falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,?De que és symbolo tu? do eterno engano,?Que envolve o mundo e o cora??o humano?Em rede de mil malhas, mysteriosa!
Symbolo, sim, da universal trai??o,?D'uma promessa sempre renovada?E sempre e eternamente perjurada,?Tu, m?e da Vida e m?e da Illus?o...
Outros estendam para ti as m?os,?Supplicantes, com fé, com esperan?a...?Ponham outros seu bem, sua confian?a?Nas promessas e a luz dos dias v?os...
Eu n?o! Ao ver-te, penso: Que agonia?E que tortura ainda n?o provada?Hoje me ensinará esta alvorada??E digo: Porque nasce mais um dia?
Antes tu nunca fosses, luz formosa!?Antes nunca existisses! e o Universo?Ficasse inerte e eternamente immerso?Do possivel na nevoa duvidosa!
O que trazes ao mundo em cada aurora??O sentimento só, só a consciencia,?D'uma eterna, incuravel impotencia,?Do insaciavel desejo, que o devora!
De que s?o feitos os mais bellos dias??De combates, de queixas, de terrores!?De que s?o feitos? de illus?es, de dores,?De miserias, de maguas, de agonias!
O sol, inexoravel semeador,?Sem jamais se can?ar, percorre o espa?o,?E em borbot?es lhe jorram do rega?o?As sementes innumeras da Dor!
Oh! como cresce, sob a luz ardente,?A seara maldita! como treme?Sob os ventos da vida e como geme?N'um susurro monotono e plangente!
E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,?Em ondas de cruel fecundidade,?Com a for?a e a subtil tenacidade?Invencivel das plantas venenosas!
De podrid?es antigas se alimenta,?Da antiga podrid?o do ch?o fatal...?Uma fragrancia morbida, mortal?Lhe re?uma da seiva pe?onhenta...
E é esse aroma languido e profundo,?Feito de seduc??es vagas, magneticas,?De ardor carnal e de attrac??es poeticas,?é esse aroma que envenena o mundo!
Como um clarim soando pelos montes,?A aurora acorda, placida e inflexivel,?As miserias da terra: e a hoste horrivel,?Enchendo de clamor e horisontes.
Torva, cega, colerica, faminta,?Surge mais uma vez e arma-se á pressa?Para o bruto combate, que n?o cessa,?Onde é vencida sempre e nunca extincta!
Quantos erguem n'esta hora, com esfor?o,?Para a luz matinal as armas novas,?Pedindo a lucta e as formidaveis provas,?Alegres e crueis e sem remorso,
Que esta tarde ha-de ver, no duro ch?o?Cahidos e sangrentos, vomitando?Contra o céo, com o sangue miserando,?Uma extrema e importante impreca??o!
Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,?Ha-de a noite encontrar, sós e encostados?A algum marco, chorando aniquilados?As lagrimas caladas dos vencidos!
E porque? para que? para que os chamas,?Serena luz, ó luz inexoravel,?á vida incerta e á lucta inexpiavel,?Com as falsas vis?es, com que os inflamas?
Para serem o brinco d'um só dia?Na m?o indifferente do Destino...?Clar?o de fogo-fatuo repentino,?Cruzando entre o nascer e a agonia...
Para serem, no páramo enfadonho,?á luz de astros malignos e enganosos,?Como um bando de espectros lastimosos,?Como sombras correndo atraz d'um sonho...
Oh! n?o! luz gloriosa e triumphante!?Sacode embora o encanto e as seduc??es,?Sobre mim, do teu manto de illus?es:?A meus olhos, és triste e vacillante...
A meus olhos, és ba?a e luctuosa?E amarga ao cora??o, ó luz do dia,?Como tocha esquecida que allumia?Vagamente uma crypta monstruosa...
Surges em v?o, e em v?o, por toda a parte,?Me envolves, me penetras, com amor...?Causas-me espanto a mim, causas-me horror,?E n?o te posso amar--n?o quero amar-te!
Symbolo da Mentira universal,?Da apparencia das cousas fugitivas,?Que esconde, nas moventes perspectivas,?Sob o eterno sorriso o eterno Mal,
Symbolo da Illus?o, que do infinito?Fez surgir o Universo, já marcado?Para a dor, para o mal, para o peccado,?Symbolo da existencia, sê maldito!
A FADA NEGRA
Uma velha de olhar mudo
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