Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 7

Antero de Quental
_quid_ innominado a que a philosophia moderna chamou Inconsciente--tudo isso é egualmente Deus: sómente é Deus percebido pela imagina??o infantil, Deus percebido pela intelligencia vulgar, Deus percebido pelo saber incipiente, e Deus finalmente incomprehendido, mas sentido, pela sabedoria. E todas essas modalidades de uma mesma impress?o, recebida e representada de fórma diversa, consoante a natureza e o estado de educa??o dos homens, s?o egualmente verdadeiras, egualmente santas e egualmente humoristicas, para aquelle que tem cora??o para sentir as cousas por dentro, e olhos para as ver de fora--objectivamente, como os allem?es dizem, e nós diremos criticamente.
Eis ahi a suprema liberdade do espirito, o Nirvana apenas intellectual, a que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que permitte comprehender todas as cousas, analysando-as e classificando-as, sem todavia nos transmittir essa especie de frialdade de cora??o, propria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um animal. O philosopho, impassivel ao analysar e classificar os phenomenos do espirito humano, ha-de misturar ao sorriso que provocam todas as vaidades e illus?es, o amor que merecem todos os sentimentos ingenuos e fundamentalmente bons; hade alliar á comprehens?o da nullidade extrinseca das cousas, a comprehens?o da sua excellencia intrinseca; exigindo que o homem seja activo, porque a actividade é boa por ser indispensavel á saude do espirito, embora os objectos da actividade sejam as mais das vezes irritos e nullos, quando considerados em si proprios e isoladamente.
E eis ahi as raz?es porque eu n?o sou buddhista... nem Anthero de Quental o é, embora julgue sel-o. A evolu??o dolorosa que terminou com o seu ultimo soneto, esta longa e tempestuosa viagem atravez do mar tenebroso da phantasia metaphisica, parece ter concluido. A edade, talvez, acima de tudo, trouxe ao espirito do poeta uma paz illuminada de bondade e sabedoria, e como a sua alma é san e a sua intelligencia firme e sempre activa, é mais que provavel que o declinar da vida de Anthero de Quental enrique?a o peculio por signal bem pobre da philosophia portuguesa com algum trabalho t?o digno de se conservar na memoria dos tempos, como estes _Sonetos_ que s?o as amargas flores de uma mocidade. Esse trabalho, porem, n?o será um cathecismo buddhista, n?o pode ser nenhuma revela??o milagrosa do _verdadeiro_ systema, porque a sabedoria nos diz que toda a preten??o de Verdade é illusoria, pois sendo nós, a nossa intelligencia, os nossos pensamentos, simples e fugitivas contingencias, é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto. Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu temperamento; e sabio é aquelle que se limita a registrar as rela??es das cousas.
III
Quem deante d'estes versos n?o sentir elevar-se-lhe o espirito, como n'uma ora??o, áquella especie de Deus que é compativel com o seu temperamento ou com o estado de educa??o do seu pensamento, é por que tem dentro do peito, no logar do cora??o, um seixo polido e frio. Quem, no meio do lidar da vida, ro?ando os bra?os pelas arestas cortantes que a erri?am de angulos, pousar o olhar da alma sobre um d'estes sonetos e n?o sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de agua limpida, é porque tem a alma feita apenas de egoismo. Quem, emergindo dos mont?es de papelada que as imprensas vomitam diariamente, deitar os olhos sobre estas paginas, e n?o sentir o deslumbramento que os diamantes produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua lingua perdeu o habito de fallar portuguez.
Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhecem de perto Anthero de Quental--e sómente o conhece quem com elle viveu largo tempo na intimidade--interroga-me geralmente d'este modo: ?E _santo_ Anthero, como vae??
Dil-o com a convic??o quente dos artistas, mas eu, que o n?o sou, tenho a p?r embargos, porque a santidade n?o é planta adequada ao clima do nosso tempo. Exige uma por??o de sentimento ingenuo que já n?o ha nos ares que respiramos.
A vida contemplativa, porem, a vida asceta inclusivamente: essa virtude austera para comsigo, tolerante para com tudo e para com todos; esse observar constante de si proprio e o dispensar de um sorriso sempre bom, embora indifferente com frequencia, aos que alguma vez o rodeiam; a caridade, o amor, a abnega??o, as tenta??es, as crises, as lagrimas, as afflic??es, as duvidas cruciantes e as dores angustiosas: tudo o que, reunido, forma uma alma mystica--tudo isso móra na alma d'este poeta arrebatada pela vis?o inextinguivel do Bem.
Só no meu cora??o, que sondo e me?o,?N?o sei que voz, que eu mesmo desconhe?o,?Em segredo protesta e affirma o Bem.
E para nada faltar a este mystico, anachronicamente perdido no meio do borborinho de um seculo activo até á demencia, tem tambem uma fé ardente--uma fé buddhista. Somente o seu Deus, Deus sem vontade, sem intelligencia e sem consciencia, é,
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