Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 3

Antero de Quental
mundo para com uma creatura humana!--E todavia o mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgra?a o acabrunhou; a sua vida tem corrido serena, placida, e até para o geral da gente em condi??es de felicidade.
é que o geral da gente n?o sabe que as tempestades da imagina??o s?o as mais duras de passar! N?o ha dores t?o agudas como as dores imaginarias. N?o ha problemas mais difficeis do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias dilacerantes da morte com as ancias do stertor, os horrores mais inverosimeis dos crimes monstruosos, as afflic??es mais pungentes da saudade, as tristezas mais dolorosas da solid?o, as luctas do dever com a paix?o, os gritos do homem arruinado, os ais da orphandade faminta... tudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a miseria até á prostitui??o, desde o andrajo até ao velludo arrastado pela immundicie, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o cora??o: tudo isso é menos, do que a agonia de um poeta vendo passar diante de si, em turbilh?o medonho, as lugubres miserias do mundo. Todas as afflic??es têm o seu quê de imaginativas, e por isso ha apenas uma especie de homens que n?o sentem: s?o os cynicos, esses que perderam os nervos da moralidade, os anesthesiados do sentimento.
Quando se é poeta como Anthero de Quental, a imagina??o exacerbada vibra como as harpas que os gregos expunham ás vira??es da brisa nos ramos das arvores. Nenhum dedo lhes feria as cordas, e todavia tocavam! Nenhuma d'essas desgra?as do mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia essa harpa geme e chora, sollu?a e grita, porque pelas suas cordas passa o vento agreste das idéas, passa o écco ullulante do egoismo dos homens, afflictivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.
II
Esta collec??o de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biographica e cyclica. Conta-nos as tempestades de um espirito; mas essas tempestades n?o s?o os quaesquer episodios particulares de uma vida de homem: s?o a refrac??o das agonias moraes do nosso tempo, vividas, porem, na imagina??o de um poeta.
O primeiro periodo, de 1860-2, contém em embry?o todos os successivos, da mesma fórma que as flores incluem em si a substancia dos fructos. Denuncía uma alma sensivel, mas patenteia já a preoccupa??o metaphisica na sua phase rudimentar de duvida theologica, e apresenta uns assomos de tristeza que s?o como os farrapos de nuvens quando velam?intermittentemente o sol, deixando antever a tempestade para o dia seguinte. Estes primeiros sonetos s?o o balbuciar de uma crean?a. Romantica? De modo nenhum. Este poeta n?o se filia em escholas, n?o obedece a correntes litterarias: a sua poesia é exclusivamente pessoal. Succedia, porem, que n'esse tempo já os nossos bardos classicamente romanticos tinham passado da moda; e a Coimbra chegavam por via de Paris os éccos do espirito novo, expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de Vera-Hegel, etc.
Tudo isso fermentava no cerebro de Anthero de Quental, mas a sua personalidade n?o se deixava absorver pelo optimismo que, depois dos romanticos, se espalhou na Europa, lyricamente ingenuo no Occidente afrancezado, systematicamente philosophico na Allemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguem o lia. N?o era moda. Pois foi essa corrente, dominante hoje, aquella em que o nosso poeta, espontaneamente, por um movimento do seu temperamento, se achou levado. Aos dezoito ou vinte annos, ignorante ainda, mas inquieto e perscrutador, o poeta que desdenha sinceramente da fama e da gloria, vê no eterno feminino de que nos falla Goethe a synthese da existencia. Os seus amores já s?o phantasticos: só tem realidade no ceu.
Alli, ó lyrio dos celestes valles,?Tendo seu fim, ter?o o seu come?o,?Para n?o mais findar, nossos amores.
E se ainda o dia, a luz, o sol _esposo amado_, têm o cond?o de o encher de enthusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que todas as mulheres, porque
Pedindo á forma, em v?o, a idea pura?Trope?o, em sombras, na materia dura?E encontro a imperfei??o de quanto existe.
Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. ?Seja a terra degredo, o ceu destino? diz n'um ponto; e n'outro:
Minha alma, ó Deus, a outros ceus aspira:?Se um momento a prendeu mortal belleza?é pela eterna patria que suspira...
N?o acreditemos tambem demasiadamente n'isto, porque Deus n?o passa ainda de uma interroga??o:
Pura essencia das lagrimas que choro?E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,?Descobre-te, vis?o, no ceu ao menos!
As luctas infantís d'este primeiro periodo para saber se Deus é ou n?o é verdade, bastam, em si mesmo e no proprio modo por que est?o expressas, para nos mostrar que o poeta n?o saiu ainda das espheras da representa??o elementar dos seres, para a esphera comprehensiva das abstrac??es racionaes. Os sonetos d'esta primeira serie desenrolam-se no terreno da phantasmagoria transcendente. O tra?o mais seguro de todos e
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