Os meus amores | Page 6

Trinidade Coelho
mesmo que o bom do lavrador achava graça. E
punha-se então a fallar muito serio, entre resignado e cortez, para o
pequeno e desdenhoso jumento--o pão e o queijo esquecidos n'uma das
mãos, na outra a navalha de meia-lua:
--Então, «Sultão», não vens?
--Não! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a
envolvel-o no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia d'aquella
immobilidade de estatua, apenas de quando em quando uma pequenina
patada na soleira, zap!
--Zangado, «Sultão»? perguntava o lavrador.--De mal comigo?
E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir á vontade...--que
não fosse vel-o o «Sultão»... Mettia entre dentes um pedacito de queijo,
logo uma codea de pão, e fazendo umas grandes rugas na testa, de
quem começa a zangar-se, voltava-se então muito serio:
--Ficas ahi, «Sultão»? Já não és meu amigo?
O gerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que
fazendo-se humilde...
--Então se és, anda d'ahi. Olha...--E mostrava um pedacito de pão.--P'ra
ti se vieres...
O «Sultão» dava tres passos, e ficava fóra do cortelho. E por se vingar,
o Thomé carregava o semblante n'uma seriedade muito pesada, e

erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto,
affirmando que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe emfim a
ameaça de o vender a um cigano, entrava a tratal-o por senhor--sôr
«Sultão»...
Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas
baixas, pescoço cahido, a modo de arrependido, parece que pedindo
perdão da arrelia.
Nervoso, sapateando, o Thomé voltava a cara para a outra banda, a rir
como um perdido.
--Diabo do gerico! diabo do ratão! Capaz é elle de fazer rir as pedras, o
mariola!--E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na guela.
No emtanto, o «Sultão» ia avançando, muito ronceiro, até que tocava
com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Thomé
sacudia-o:
--Sae-te p'ra lá! dizia elle muito amuado, sem se voltar.--Cuidas talvez
que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vae-te!
Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao
focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. «Sultão» lançava um
olhar obliquo, entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o
beiço superior, a tremer, e roubava-lh'o da mão.
Pazes feitas! Era então rir a perder, n'umas casquinadas agudas, muito
estridulas.
--Credo, homem! dizia de cima, da janella, a sr.^a Josefa.--Até pareces
doido!
--Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono?
perguntava o Thomé, n'uns grandes gestos.--Vamos que eu lhe não
queria dar da merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem! agora
brinque.

Era precisamente o que o Thomé queria:--ver o «Sultão» a brincar.
...Nada, com effeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do
lavrador, e melhor o indemnizasse d'aquellas fainas laboriosas que lhe
consummiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob soes
causticantes e chuvas torrenciaes.
Por isso, era de ver como elle ria, com uma boa vontade deliciosa, das
«partidas» e «diabruras» do «Sultão»! Ás vezes, o pequeno jumento,
ferido não sei por que vespa invisivel, despedia sem mais nem menos
n'uma carreira aberta, focinho entre as pernas deanteiras, agitando a
cauda, por aquella rua fóra. Rompia de toda a banda n'um alarido o
rancho pacifico das galinhas, que já no ar andavam como doidas,
cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Accudia gente aos
postigos, ás portas, ás janellas, a ver a polvorosa; e subito se inundava a
rua de rapazes, rotos, descalços, alguns quasi nús, correndo atraz do
burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o--como se o mesmo
vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a propria rua... E
um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o
«Sultão», apupado, perseguido, acclamado, na malta espavorida dos
inimigos...
--«Sultão»! eh lá! «Sultão»!
Subito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de
volta d'elle postava-se a rapaziada, mas n'um alor de nova fuga, não lhe
desse na bôlha atacal-os... E abriam alas de repente, quando elle,
tomado de novo accesso, voava para as bandas do dono, que por se não
deixar atropellar investia com o «Sultão» de braços abertos, o que era,
já se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E vinham as
gargalhadas estridulas, os rogos para que pozesse treguas, as supplicas
para que se accommodasse, recuando o lavrador até ao ultimo degrau
da escada, onde se deixava cair,--derrotado!
--P'ra lá, «Sultão»! p'ra lá! fazia então o Thomé, oppondo-lhe os pés,
desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para traz, a rir
como um perdido.

Então o pequeno jumento estacava, offegante. Mas prestes rompia a
girandola dos coices, em que era eximio, sacudindo muito as patas,
cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Thomé solicito dava
aos rapazes o aviso de se arredarem--«porque era doido, aquelle
demonio»!...
Outras vezes, parece que variando de
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