Os meus amores | Page 5

Trinidade Coelho

--Ali mesmo--volveu-lhe já de marcha.
E repoisando a mão direita sobre o hombro esquerdo da rapariga,
repetiu-lhe muito contente:
--É mesmo além.
N'uma terra de restolho, um largo quadrado de cancellas marcava o
espaço que as ovelhas tinham de occupar essa noite.

--Falta pouco; a gente vae pelo atalho que é só mau p'ra quem passa a
cavallo.
E como elle ia expansivo, e a companheira não dava palavra, quiz então
saber:
--Estás triste, ó Rosaria?
--Triste... não. Já agora... tem de ser--volveu-lhe cabisbaixa.
--Huum! Arrependeu-se...--volveu comsigo o pastor.
* * * * *
Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para
dentro e toca a merendar; o que era d'um era d'outro: elle ainda trazia
azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo
apontou para a cabana que ficava alli perto, e propoz que se deitassem:
estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora.
Quando o Gonçalo e a Rosaria entraram na cabana e se deitaram sobre
o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um do
outro os bornaes que faziam de travesseiro, cerrára de todo a noite, e
formigueiros de estrellas scintillavam vivezas de prata polida no azul
indefinido do céo.
--E os lobos?--perguntou a Rosaria com medo.
--Não ha perigo--tranquilisou-a o Gonçalo.--Isso é lá com os cães.
* * * * *
Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a musica triste dos
chocalhos. A ladrar, os cães faziam echo. O rebanho devia dormir
profundamente, immerso no mesmo somno em que jazia prostrada toda
a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum
tempo, n'um ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga,
se deixaram adormecer,--quando a historia das moiras encantadas ia no
seu melhor episodio...

E lá no alto céo, mesmo sobre a cabana, a estrella da tarde não era nem
mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa d'aquellas
duas creanças...
Quando ao repontar da manhã se levantaram, e sahiram a vêr o céo...
--Bonito dia, Gonçalo!
--Bonito dia, Rosaria! Olha...
...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando...
voando...

SULTÃO
(Copiado do Natural)
Ao meu Henrique e a Beldemonio, seu amigo.
I
Ao cair da tarde, o Thomé da Eira entrava em casa, cançado, esfalfado
de andar um dia inteiro a mourejar no campo.
--Meus peccados, boa tarde!--dizia elle para a mulher, com um sorriso a
affectar seriedade.
Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a benção.
--Deus te abençoe.
--Pae, olhe que o «Sultão»... ia a dizer o pequeno.
--Bem sei! atalhava logo o Thomé.--O «Sultão» é um maroto e tu és
outro.
E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de
meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze annos, e abria a

gaveta do pão, o Thomé punha-se a fazer de interesseiro comsigo
mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse:
--É que por este caminho não tenho um dia descançado... Nem uma
hora...
Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.
--...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim ha de chegar... A
modos que vou já cançando...
Mas o Thomé não era homem que dissesse estas coisas de coração.
Pareciam-lhe longos, interminaveis, os aborrecidos domingos que
passava sem ir campos fóra, madrugador como um melro.
--Uma aquella como outra qualquer! dizia o bom do Thomé encolhendo
os hombros, como quem está desgostoso com um genio assim.
Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua
cabrada, e veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra
que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito á
vontade.
Costume velho do Thomé:--mal se sentava, mastigando o «boccado»,
dizia logo para o filho:
--Ouves, Manuel? Bota cá fóra o «Sultão».
O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia
nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de
contente, dizendo cá da rua:
--«Sultão»! Sae cá p'ra fóra, «Sultão»!
No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta
baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em
riste, grandes olhos de uma tristeza perpetua, n'um movimento moroso
de palpebras pestanudas...

E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas
pernas delgadas, a olhar o Thomé que o chamava,--um grande riso de
alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu «Sultão».
Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em
arreliar o Thomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre
linha de quadrupede de boa raça, alguem lhe poderia lêr no olhar, mole
e impassivel, o frio, gelado despreso a que parecia votar o dono...
Mas era áquillo
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