todas que ella
lhe tinha ensinado.»
--Lembras-te?
A Rosaria faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na frauta de
sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:
--Sahem d'aqui sem falhar uma.--E resoluto:--Vá feito, Rosaria, pede
por bocca!
A Rosaria pediu então a Pastorinha.
--Eu é da que mais gosto,--explicou.--É a mais linda.
--E é!--concordou o Gonçalo.--Ora escuta lá.
E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a
Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra:
Onde vás, ó Pastorinha, Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé...
--Sabes essa! É mesmo assim!--disse-lhe a Rosaria a rir-se.
--É como vês!--affirmou contente o Gonçalo.
Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos,
confundidos, andavam na pastagem.
--Olha as ovelhas juntas!--notou o Gonçalo.
--Tambem nós nos quedámos juntos,--volveu-lhe a pequena,
sorrindo.--As pobres dão-se bem, são amigas...--continuou com jubilo.
--E nós tambem, ora tambem, Rosaria?
--Tambem--respondeu afoita a pastora.
E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as
denuncias.
* * * * *
A esse tempo, no céo alto e lavado a estrella d'alva fenecera por fim, e
o horisonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céo em
cupula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias extranhas que
iam despertar tudo, a côr da paizagem e a musica dos ninhos, cantigas
de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de verão,
serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario
de azas--passarada alegre que sahia agora dos ninhos e voava a matar a
sêde á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas
em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convisinhos onde a
vegetação era mais rica de seiva e mais facil a presa dos insectos,
perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas,
melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes,
gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos,
em torcicóllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos
carregados de taleigos, e berrando-lhes cada chó! que se ouvia na outra
ladeira. Já nas povoações proximas sinos chamavam para a missa d'alva
ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas fumegavam os tectos,
dizendo horas de almoço. De modo que o sol quando rompeu, solemne
e triumphante no céo immaculado, encontrou muita vida pelos campos,
toda a natureza acordada para a labuta interminavel do dia. N'uma
clareira elevada, dominando o rio e um trecho de paizagem para sul,
tinham-se sentado os dois pastores e continuavam conversa.
Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua
côr trigueira levemente pallida desde que tivera as maleitas. Não se
lembrava com que santa que elle tinha visto se lhe parecia agora a
Rosaria...
--Mas o cabello assim cortado...--disse com magua, mirando-lhe a
cabeça nua, e passando a mão pela d'elle,--é que te não fica bem!
«Melhor fôra que lhe tivessem deixado as tranças. Negras, de mais a
mais, que era como elle gostava...»
--Promessa da mãe se eu melhorasse--explicou a Rosaria--Lembranças...
A gente quando está afflicta...
--...Quando está afflicta...--repetiu como um echo o pequeno. E depois,
amuado:--Se promette os olhos...
A rapariga fitou-o, espantada.
--...é porque t'os tirava!--concluiu convicto.
Houve um momento de silencio, em que o Gonçalo se pôz a escavar o
chão com uma pedra, e a Rosaria a torcer um fio saliente do seu vestido
grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar
na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar.
--Não fallas, Rosaria?--perguntou o pastor sem levantar os olhos para
ella.
--Tambem tu...--começou com medo a pequena,--logo te zangas!
Olhem a lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso, credo!--E depois
animando-se:--Já foste á Senhora dos Remedios?
O Gonçalo fez signal que não tinha ido.
--Pois foi lá que deixámos as tranças, eu mais a mãe. N'um prego ao
lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo.
O pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a conversa. E
para acabar com ella:
--Que emfim como melhoraste...--fez que concordava, pondo o bilro a
girar.--Olha como dança...--E depois, mais pensativo, batendo com o
bilro nos dentes:
--Que ás vezes as promessas pouco fazem...--E interrompendo:--Sabes
quem fez este bilro?
--Foste tu, aposto.
Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lh'o
orgulhoso--«que visse os torneados.» Depois continuou:
--Vae uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora, os
santos!--Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A gente bem resou
e bem promessas fez, mas ella foi-se.
E pondo-se de joelhos, começou a procurar pelo rebanho.
--Aquella ovelha, a branca, não vês? A que se vae agora deitar... Pois
era p'ra Nossa Senhora, repara que é a melhor.--E deitando-se para
traz:--Lá anda ella a pastar!--concluiu desalentado.
--Mas tinha de ser,--volveu-lhe triste a
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