Os meus amores | Page 4

Trinidade Coelho
sitios mais ensombrados, para se livrarem da estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio dia, que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os pinheiraes, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros levaram de conversa quasi o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que as horas passassem t?o depressa. Ainda armaram aos passaros, mas foi o mesmo que nada, os demonios andavam espantados e já conheciam as esparrellas.
--Olha lá n?o caiam,--tinha dito o Gon?alo, já can?ado de estar á espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo.--Se elles fossem tolos...
E foi-se a recolher as esparrellas, dando ao demonio os passaros. Ella ent?o propoz que jogassem a pocinha.
--E o fito, ó Rosaria? Sabes jogar ao fito? No adro, aos domingos de tarde, bato-me com qualquer, sabias?
E generoso:--Mas a ti dou te partido: vinte e cinco ás quarenta...
Como o tempo rendia, jogaram tudo--a pocinha, o fito, as necas, a bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia á m?o, era elle que ia buscar o pausinho, quando zinia longe.
--Turco, traz cá!
* * * * *
No emtamto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céo esmorecia no seu azul suavissimo. Em todo o espa?o o ar estava tranquillo e sereno, e já come?ava para poente a decora??o phantastica do occaso. Parece que se ouvia mais distincto o marulhar das aguas no rio; já n?o faiscava assim t?o viva a areia branca das margens.
Foi quando o Gon?alo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as ovelhas, para as terras onde tinham de pernoitar. E fitando fixamente os olhos negros da Rosaria, disse-lhe assim:
--Mas olha o que prometteste... Inda vaes feita no que disseste?
?Ora que lhe custava a ella! Já que as ovelhas tinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa noite??
--E o mais, ó Rosaria?--perguntou de novo com interesse.
A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor n?o cessava de a olhar, respondeu:
--Tambem.--E sorriu-se.--Pois eu...
Só depois d'esta segunda promessa o Gon?alo se levantou, e deu o signal de partida, assobiando aos c?es.
D'ahi a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo areal a sombra dos tres arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando á agua a sua translucidez normal.
--é bonito!--fez notar o pastor.
A Rosaria explicou logo:
--S?o as moiras a ca?ar com redes d'oiro, sabias?
Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam á fl?r da corrente as cabe?as dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da chata que vogava serenamente, a m?e com o mais novito ao collo n?o os perdia de vista, emquanto o pae, em mangas de camisa, de pé n'um topo de fraga, lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, tres vitellas passavam o rio a vau, muito devagar, parando a espa?os, alongando o pesco?o para a veia d'agua serena, bebendo mansamente. Sobre o vitello das malhas brancas, o guardador cantarolava, acenando com o chapeu ao moleiro--?boas tardes! boas tardes!? Ao sahir da ponte, o rebanho teve de se affastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas.
--Adeus pequenos! cumprimentou.
--Venha com Deus!--tornaram-lhe ambos.
E de novo se pozeram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas, confraternisavam os c?es como bons e leaes amigos. á frente, o Gon?alo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosaria cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho, casava-se com a musica, fundindo-se n'uma nota subtil, d'um pittoresco ingenuo de ballada...
Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro, e ent?o, parando um momento, o Gon?alo perguntou, collocando na sua frente a Rosaria, e pondo-lhe á cara a flauta, na direc??o em que devia olhar.
--Vês além... n'este direito? Rez-vez do castanheiro, n?o enxergas?
A outra fez que sim com um gesto, e interrogou:
--Ent?o é ali?
--Ali mesmo--volveu-lhe já de marcha.
E repoisando a m?o direita sobre o hombro esquerdo da rapariga, repetiu-lhe muito contente:
--é mesmo além.
N'uma terra de restolho, um largo quadrado de cancellas marcava o espa?o que as ovelhas tinham de occupar essa noite.
--Falta pouco; a gente vae pelo atalho que é só mau p'ra quem passa a cavallo.
E como elle ia expansivo, e a companheira n?o dava palavra, quiz ent?o saber:
--Estás triste, ó Rosaria?
--Triste... n?o. Já agora... tem de ser--volveu-lhe cabisbaixa.
--Huum! Arrependeu-se...--volveu comsigo o pastor.
* * * * *
Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para dentro e toca a merendar; o que era d'um era d'outro: elle ainda trazia azeitonas, um naco de queijo, p?o. Mal acabaram de comer, o Gon?alo apontou para a cabana que ficava alli perto, e propoz que se deitassem: estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora.
Quando o Gon?alo e a Rosaria
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