Os meus amores | Page 3

Trinidade Coelho
é mesmo assim!--disse-lhe a Rosaria a rir-se.
--é como vês!--affirmou contente o Gon?alo.
Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem.
--Olha as ovelhas juntas!--notou o Gon?alo.
--Tambem nós nos quedámos juntos,--volveu-lhe a pequena, sorrindo.--As pobres d?o-se bem, s?o amigas...--continuou com jubilo.
--E nós tambem, ora tambem, Rosaria?
--Tambem--respondeu afoita a pastora.
E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias.
* * * * *
A esse tempo, no céo alto e lavado a estrella d'alva fenecera por fim, e o horisonte come?ava de carminar-se ao de leve. Por todo o céo em cupula, a luz fresca e viva da manh? vibrava harmonias extranhas que iam despertar tudo, a c?r da paizagem e a musica dos ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manh? de ver?o, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario de azas--passarada alegre que sahia agora dos ninhos e voava a matar a sêde á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convisinhos onde a vegeta??o era mais rica de seiva e mais facil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em torcicóllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada chó! que se ouvia na outra ladeira. Já nas povoa??es proximas sinos chamavam para a missa d'alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas fumegavam os tectos, dizendo horas de almo?o. De modo que o sol quando rompeu, solemne e triumphante no céo immaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a natureza acordada para a labuta interminavel do dia. N'uma clareira elevada, dominando o rio e um trecho de paizagem para sul, tinham-se sentado os dois pastores e continuavam conversa.
Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua c?r trigueira levemente pallida desde que tivera as maleitas. N?o se lembrava com que santa que elle tinha visto se lhe parecia agora a Rosaria...
--Mas o cabello assim cortado...--disse com magua, mirando-lhe a cabe?a nua, e passando a m?o pela d'elle,--é que te n?o fica bem!
?Melhor f?ra que lhe tivessem deixado as tran?as. Negras, de mais a mais, que era como elle gostava...?
--Promessa da m?e se eu melhorasse--explicou a Rosaria--Lembran?as... A gente quando está afflicta...
--...Quando está afflicta...--repetiu como um echo o pequeno. E depois, amuado:--Se promette os olhos...
A rapariga fitou-o, espantada.
--...é porque t'os tirava!--concluiu convicto.
Houve um momento de silencio, em que o Gon?alo se p?z a escavar o ch?o com uma pedra, e a Rosaria a torcer um fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar.
--N?o fallas, Rosaria?--perguntou o pastor sem levantar os olhos para ella.
--Tambem tu...--come?ou com medo a pequena,--logo te zangas! Olhem a lembran?a dos olhos! Se a m?e fazia isso, credo!--E depois animando-se:--Já foste á Senhora dos Remedios?
O Gon?alo fez signal que n?o tinha ido.
--Pois foi lá que deixámos as tran?as, eu mais a m?e. N'um prego ao lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo.
O pastor teve um movimento de enfado, n?o lhe agradava a conversa. E para acabar com ella:
--Que emfim como melhoraste...--fez que concordava, pondo o bilro a girar.--Olha como dan?a...--E depois, mais pensativo, batendo com o bilro nos dentes:
--Que ás vezes as promessas pouco fazem...--E interrompendo:--Sabes quem fez este bilro?
--Foste tu, aposto.
Bateu no peito e fez com a cabe?a que sim, mostrando-lh'o orgulhoso--?que visse os torneados.? Depois continuou:
--Vae uma pessoa andando e os santos n?o se importam. Ora, os santos!--Olha a minha Joaquina, tu n?o conheceste. A gente bem resou e bem promessas fez, mas ella foi-se.
E pondo-se de joelhos, come?ou a procurar pelo rebanho.
--Aquella ovelha, a branca, n?o vês? A que se vae agora deitar... Pois era p'ra Nossa Senhora, repara que é a melhor.--E deitando-se para traz:--Lá anda ella a pastar!--concluiu desalentado.
--Mas tinha de ser,--volveu-lhe triste a Rosaria,--que as promessas sempre fazem, lá isso...
E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o Gon?alo de que sempre valiam as promessas. No emtanto, deitado de costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em angulo tocando-se com os joelhos, o Gon?alo soprava pela palha o bugalhinho que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do c?o que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a Rosaria ia entretendo o pastor. Mas quando ella fazia pausa, logo o rapaz acudia, firme na sua objec??o:
--Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!
* * * * *
á medida que o sol ia subindo, no céo glorioso e fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para
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