Os meus amores | Page 9

Trinidade Coelho
largasse ele o burro, e o burro é que havia de resolver...?
--Serve-lhe o contrato?
--Qual contrato?
--Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro às soltas. Depois, é p'ra onde ele for. Se o burro larga p'ra trás, lá p'r'as bandas donde você vem... Você donde vem?
--Dos Casais.
--Pois aí está. Se o burro tomar p'r'os Casais, o burro fica seu...
--E tomando direito à aldeia, é do Sr. Tomé,--concluíram alguns do grupo, conciliadores.
--Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.
Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia história que o burro tomasse para a aldeia... Vinha de t?o má vontade, que até lhe custara tirá-lo de casa.
--Olhe que vai pr'os Casais! Digo-lhe ent?o que vai pr'os Casais...--afirmou.
--Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vai. Você está pelo dito?--quis saber o Tomé.
--Sim senhor, estou! Pois que dúvida tem que estou? disse-lhe o outro num rompante. Olhe: uma, duas, três; às três largo-lhe a arreata.
Ia já a abrir a boca para dizer--?uma!?
--Alto! fez o Tomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas festas ao animal.
E p?s-se a bater-lhe na anca, no pesco?o, no peito, demorando-se um pouco a fitá-lo de frente, ?para que o animal o conhecesse.?
--?Sult?o?! gritou-lhe de repente. Eh! ?Sult?o?!
O burro estremeceu... Dir-se-ia que no fundo da sua memória, a lembran?a porventura adormecida daquele nome despertara subitamente...
--Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se p'ra ali. Isso. Nem é p'r'os Casais nem p'r'o lugar. Assim. Eh! Eh!
E afastou-se para o lado, aguardando.
Uma ansiedade dominava naquele momento os do grupo; o Tomé p?s-se a roer as unhas, nervoso...
--Ent?o você porque espera? perguntou.
Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:
--à uma!...
O Tomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar de esguelha, e entre os dentes ferrados o polegar da m?o direita...
--...às duas!
--Ih! c'um raio!... dizia baixo o Tomé.
E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com for?a.
--...às três!
Foi ent?o um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e gargalhadas! O Tomé vencera: corriam todos a abra?á-lo, afirmando que o caso era para foguetes.
--Viva o Sr. Tomé! Viva o ?Sult?o?! Aquilo é que é burro!
--Aquilo é que é amigo, h?o-de vocês dizer!--emendava o Tomé a rir. Tenho-os com dois pés, que n?o valem metade...
--Oh! Sr. Tomé! protestavam alguns.
--Isto n?o é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que n?o é com vocês.
E ria, ria como um perdido, enquanto, estrada fora, o ?Sult?o? corria que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao fundo, na poeirada imensa da estrada, como que nimbado num resplendor de apoteose. E na peugada do burro, esbaforido e como doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abra?o, pregado no dos Casais...
Quando o Tomé chegou a casa, ofegante, a suar, cheio de gestos e de palavras entrecortadas de riso, já o ?Sult?o?, relinchando, pateava à porta do antigo cortelho, numa grande impaciência, um ?rap-rap? contínuo na soleira.
--Venham ver! Venham cá ver! berrava o Tomé para a vizinhan?a. ó António! ó compadre! ó Maria Engrácia!
às janelas assomava gente, perguntando se era fogo.
--Qual fogo, nem qual carapu?a! é o ?Sult?o?, mas é! Este inimigo! ó Josefa! Josefa! cá temos o burro, este demónio. Assoma.
Ora imaginem agora os senhores, se podem, a efus?o do lavrador. Abra?os? E até beijos. Aquilo era um tesouro perdido que reaparecia alfim. A mulher, do alto da escada, benzia-se, perguntando se o seu homem teria endoidecido...
--Palavra de rei, ?Sult?o?, palavra de rei! Anda daí pelos sacos. S?o só dois. ó Josefa! Ouves? p'ra cá esse garraf?o que está ao pé da arca, avia-te. A caneca também, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior.
E atirando as m?os ambas para a albarda, montou muito regalado, de um pulo.
--Ah!
A senhora Josefa assomava, ajoujada com o enorme garraf?o.
--Anda, mulher, p?e aqui diante de mim. Avia-te.
Ia a boa da senhora Josefa arriscar uma observa??o, um conselho, qualquer coisa de tomo...
--Adeus, minhas encomendas! N?o me fanfes, mulher, n?o me fanfes. P?e aqui, que mando eu, avia-te. Assim. Está bem.
--Nome do Padre...
--Ent?o que lhe queres? Deu-me agora p'r'aqui!
--Nome do Padre, nome do Filho...
--A caneca! Venha de lá agora a caneca!
--...nome do Espírito Santo!
--Passa bem, ó mulher,--concluiu às gargalhadas, entre as gargalhadas dos demais.--Ouves? Quando o Manuel vier dos ninhos, esse maroto, manda-mo às eiras. A trote, ?Sult?o?! Eh! valente!
E lá parte, veloz como uma seta. Já de longe volta-se do repente:
--Josefa! ó Josefa! nesse alguidar do meio umas sopas de vinho p'r'o ?Sult?o?, ouviste? No do meio. O grande é muito grande, e esse pequeno n?o presta. Ouves? mas quer-se coisa que farte, bem entendido.
E de novo despediu como uma flecha, abra?ado ao garraf?o. Arreata para a direita, arreata para a esquerda, pernas a dar a dar, ele lá vai numa corrida, sumido numa onda de poeira, até chegar às primeiras ?medas?.
--Vinho, rapaziada! ó Maria do Carmo, toma lá
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