Inverno o vento assobiava lúgubre, e as águas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem incautos, num descuido involuntário--simples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara.
E ent?o, cabe?os enormes de um lado e doutro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitário, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paisagem.
A todo o comprimento da margem, o rebanho p?s-se ent?o a beber manso e manso, e sem o mínimo ruído.
Foi quando o Gon?alo acabou de se convencer que na margem de lá, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia também.
--Tate, Gon?alo! Aquela chocalhada...
E imóvel, remordendo o lábio, com o ouvido à escuta, pensava:
--Ora se será ela?...
Súbito, estremeceu. Ante o seu espírito infantil perpassou, como um clar?o de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como ele, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito n?o vira.
--Ai, se fosse a Rosária!... dizia consigo.
E impondo silêncio ao rebanho, que acabara de beber, p?s-se atentamente à escuta do tilintar dos chocalhos na margem oposta.
?O rebanho parecia o mesmo, lá isso... Agora o pastor é que podia ser outro que n?o a Rosária...?
Sen?o quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao ch?o a manta e o marmeleiro, e puxando para diante o bornal, feito da pele de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e p?s-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rústica.
No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:
--Eh lá, Gon?alo, és?
O pastor desatou a rir.
--Uh lá, Rosária, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!
E logo a voz fresca da rapariga lembrou:
--N?o te esqueceu a moda, rapaz!
--Isso esquece ela!... Ouviste, Rosária?--Se outra fosse que ma tivesse ensinado...
Neste meio tempo já o Gon?alo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosária. Mas primeiro perguntou:
--Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?
--Vem tu daí. Por cá sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. H??
--Basta!
E dando o sinal da partida, o Gon?alo p?s-se em marcha. Daí a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte mourisca, toda severa de constru??o nos seus três arcos lan?ados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pitoresca, heras, silvas, ortigas bravas.
A meio da ponte, m?o piedosa fizera construir pequeno oratório ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devo??o rezassem uma velha prece que era como um talism? precioso para livrar de maiores desgra?as--naufrágios no rio, e ent?o maus encontros por aqueles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animais.
Daí a pouco, as duas crian?as estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho.
--Ora viva a Rosária!--disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.
--Bons dias, Gon?alo; ent?o que ventos?
Entre os dois travou-se ent?o um longo diálogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquele dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Cani?os.
--Por sinal que nem rês se vendeu!--lembrou o Gon?alo.
--Por sinal!--disse com pena a Rosária.
Mas ele contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava. ?Vê-la agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja ele...?
--Mas se eu estive t?o doente!--volveu triste a Rosária.
E como o outro acudiu a informar-se, ela explicou:
--Umas quart?s que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manh? até ao escurecer... Uma assim!
E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gon?alo que muitas vezes, na febre, sonhara com ele, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, ?tal e qual?.
--Assim te Deus salve, ó Rosária?--atalhou rápido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos daquela pequena amiga.
--Assim; pois que dúvida?--tornou-lhe confiada a Rosária.
--N?o!--disse agastado o Gon?alo.--N?o hás-de dizer assim... Diz certo, hás-de jurar direito.
--Pois assim me Deus salve...
--Como é verdade...--Diz tudo, Rosária!--suplicava o pastor.
--Sim, volveu-lhe paciente a companheira,--como é verdade que sonhava que nos encontrávamos--concluiu por fim, muito risonha.
E sem disfar?ar o júbilo, prestes o Gon?alo a certificou de que também n?o a esquecera. ?Tanto é que tirava da flauta as cantigas todas que ela lhe tinha ensinado.?
--Lembras-te?
A Rosária faz que sim com a cabe?a. E logo, batendo na flauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:
--Saem daqui sem falhar uma.--E resoluto:--Vá feito, Rosária, pede por boca!
A Rosária pediu ent?o a Pastorinha.
--Eu é da que mais gosto,--explicou.--é a mais linda.
--E é!--concordou o Gon?alo.--Ora escuta lá.
E levando aos lábios a avena, p?s-se a tocar a Pastorinha, enquanto a Rosária, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a letra:
Onde vás, ó Pastorinha, Ai-li, ai-li,
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