Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 9

Júlio Dinis
melancolica, que �� o ar que lhe conv��m. E ella tem raz?o; o futuro tem muita vida para precisar do prestigio poetico. A poesia dos utilitarios! Com o que tu me vens! N?o sei quem foi que ha tempos me disse ter lido uma noticia curiosa a respeito da Inglaterra. Parece que o espirito industrial e economico d'aquella gente vae por l�� destruindo as florestas, as matas, as sebes vivas, o que emmudecer�� dentro em pouco os c��ros das aves; os rebanhos, que d'antes pastavam pelas campinas verdes, hoje j�� prosaicamente se v?o engordando nos estabulos! Que mais falta? A voz dos camponezes, as cantigas e as musicas ruraes h?o de calar-se ao ruido do ranger das machinas e do silvo do vapor. Admiravel! Em vez do fumo alvo e tenue das cho?as ficar�� o c��o coberto de fumo negro e espesso do carv?o de pedra. Que modelo de aldeia o que nos vem da Inglaterra! Na verdade! que poesia!
--No que tu me vens fallar! Na Inglaterra agricola!--acudiu Jorge--Mas antes l�� �� que bem se comprehende a poesia da vida rural, que at�� a nobreza a n?o despreza. Sempre ouvi dizer que os senhores das terras e os rendeiros fraternisam e auxiliam-se mutuamente, e que os trabalhos do anno succedem-se entre festas e solemnidades populares, lucrando todos, trabalhando todos, e enriquecendo cada vez mais a terra. Deves confessar que ha mais poesia nos dominios senhoris dos lords de Inglaterra, que dirigem por si mesmos as suas vastas emprezas agricolas, do que nos pardieiros em ruinas dos nossos morgados, em cujas velhas salas dormem os proprietarios o somno da ignorancia, da inutilidade e da devassid?o.
--N?o o nego, mas... na nossa casa, naquella triste Casa Mourisca, ha um qu�� de poesia, de poesia elegiaca, se assim quizeres. Essa de que fallas ser�� a poesia das georgicas; mas a da elegia deixa-m'a ficar.
--O peior, Mauricio, �� que um dia vir�� talvez em que o tremendo prosaismo da completa miseria dissipar�� esse tenue perfume que dizes.
--Safa! Est��s hoje com uns humores de Cassandra, Jorge! Deixa l��; lembra-te de que se diz que nas nossas propriedades ha um thesouro escondido desde o tempo dos mouros, e que um dia alguem de nossa familia o achar��, ficando fabulosamente rico. Que essa esperan?a dissipe o humor negro que tens. Vamos, vem d'ahi. Pega n'esta espingarda e vae ca?ar. �� bom para dissipar vis?es.
--N?o estou hoje para ca?ar.
--Ent?o vaes reatar aqui o fio das tuas cogita??es?
--N?o, vou reatal-o acol��.
--Vaes �� Herdade?!
--Vou.
--Fazer o qu��?
--V��r de mais perto aquella poesia, ou aquella prosa, como quizeres.
--Sabes que o pae n?o gosta que lidemos muito de perto com o Thom��?
--Sei. �� um preconceito. Elle n?o o saber��.
--Um preconceito! Bom! Est��s hoje muito philosopho. Adeus, Jorge; espero v��r-te ao jantar de melhor aspecto.
--Adeus, Mauricio.
E os dois irm?os separaram-se. Mauricio, precedido pelos c?es, seguiu em direc??o dos montes, cantando. Jorge desceu a collina e caminhou para a Herdade.

III
Thom�� da Povoa era o typo mais completo de fazendeiro, que p��de desejar-se.
?Alma s? em corpo s?o?: esta phrase do poeta �� a que descreve melhor o homem; no physico, a for?a e a saude em pessoa; no moral, a honradez e a alegria.
Emquanto houvesse alguem que trabalhasse em casa, n?o descan?ava elle. Delicias do somno de madrugada, attractivos das sestas, a tudo resistia com nunca desmentida coragem. Na abastan?a conservava os costumes laboriosos de tempos mais arduos. Tudo lhe corria pelas m?os, a tudo superintendia. Antes de almo?ar j�� elle havia passado revista �� Herdade toda. No decurso do dia montava a cavallo e l�� ia inspeccionar uma ou outra propriedade mais distante, que n?o deixava entregue �� discri??o dos caseiros. Uma ou duas vezes no mez estendia as suas excurs?es at�� o Porto, chamado por negocios relativos �� lavoura.
Franco, lizo de contas, pontual nos pagamentos, cavalheiro nos contractos, n?o se lhe limitava o credito �� circumscrip??o da sua aldeia, estendia-se at�� �� cidade, onde o seu nome era melhor garantia em certas transac??es, do que o de muitos faustosos negociantes. Em familia, perfeitamente patriarchal, estremecia a mulher e os filhos; e a lembran?a de que para elles trabalhava, illudia-lhe as fadigas e os desalentos.
Quando Jorge se dirigiu �� Herdade, presidia ainda Thom�� aos diversos trabalhos, em que a sua gente andava occupada n'aquella manh?.
N?o havia alli bra?os quietos, nem movimentos inuteis. N'aquellas casas o trabalho n?o distingue sexo nem idade. Todos desde a infancia se familiarisam com elle. D��-se o mesmo que se d�� com o tracto dos bois; s��mente na cidade �� que estes possantes e bondosos animaes mettem medo ��s mulheres e ��s crian?as; na aldeia umas e outras os afagam e dirigem.
Assim pois trabalhava-se, fallava-se, ria-se e cantava-se com alma nas eiras e quinteiros da Herdade.
E Thom��, centro d'aquelle movimento, lan?ando os olhos a tudo, dirigindo a todos a palavra e a
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