Os Sinos | Page 3

Raul Proença
profundamente azul.
Fugi das noites calmas, mornas luarisadas,
Em que o encanto nos
vence e o espasmo em nós actua!
Loucas de muito amor, fugi ás
guitarradas,
Escravas da Paixão, tende medo da Lua!
De manhã, quando o Sol clareava o horizonte
E o rouxinol findava a
amena cavatina,
Despediam-se então com um beijo na fronte,

S'tenuados d'amor d'essa noite divina.
Mas Leonor ficava ainda por instantes,
Espalhados ao vento os seus
cabêlos finos,
E mergulhava a alma em sonhos delirantes,
Na doce
vibração harmonica dos sinos.

Durou pouco o Amor, porém, assim feliz!
O Amor, o eterno Amor!
que inconsistente liga!
Ninguem como ella o quiz! ninguem como
elle a quiz!
Separou-os, porém, o cru punhal da Intriga.
A Intriga é essa mulher que ao cisne que descreve
Um sulco encantador
No lago, branco e leve,
Tenta com mancha
escura enodoar-lhe a côr,
E transformada em neve
É a geada que queima a delicada flôr.
Leonor endoideceu, então, cheia de magua,
Na janella, a sonhar... a
cantar... a chorar...
E vinham-lhe ao olhar per'las de sangue e d'agua


Quando ouvia na torre os sinos a tocar.
E empalidecia a incomparavel face,
Essa ideal belleza,
Como uma ave azul que se afogasse
Em ondas
de loucura e de tristeza.
Dizia então:
«Lá vão nos coches os casados,
Cheios de luz na fronte e
resplendente o olhar...
Vejo-os... Vejo-os unir os labios orvalhados,

Como lindos rubis, mimosas per'las
Num unico colar!
Virgem, tu que sofreste a tragica Paixão,
Com os peitos golpeados,
Tirae-me o coração,
Arrancai-m'o aos
bocados!
Viste o heroico Jesus, o Propheta incançavel
Nos braços
d'uma Cruz, Olimpica Rainha,
E apesar d'essa dôr enorme e
incomparavel
Não sei qual foi maior, se a tua dôr, se a minha!
Perdi
o noivo! e eu quiz que nunca mais bradasses
Na tua bronzea voz! ó
Sino, que irrisão!
P'ra que os Sinos ouvir, a annunciar enlaces,
Se para mim não tocam...
Nem nunca tocarão!»
Tinha acabado a doida de fallar,
Doida gentil de olhos azues e vagos,

Tendo na fixidez macia do olhar
A immobilidade terna e mistica
dos lagos.
E os sinos do mosteiro, alem, fortes, vibrantes,
Espalhavam no ar
notas bruscas, ligeiras,
Claras como cristaes, vivas como diamantes,

E como o desfraldar de sonoras bandeiras.
Tudo se agita em espanto e a villa inteira corre,
Os homens, as
mulheres, os rôtos pequeninos
Ao sentirem cair, cristalina, da torre,

A chuva torrencial do repique dos sinos.

Leonor ouvia, ouvia, a chorar e a tremer,
Aquêles sons joviaes dos
sinos a tocar.
Era a primeira vez que alegres os viu ser,
E era a
primeira vez que os ouvia a chorar!
E emquanto o sino ria esses risos saudaveis
Das creanças gentis, dos
anjos pequeninos,
A agua viu cair dos olhos adoraveis
Na
alacridade vaga e mistica dos sinos.

De repente, saiu da igreja uma donzella,
Vestida a seda azul, numa
expansão inteira,
E Leonor estendia o corpo na janella,
Ao ver-lhe
no cabêlo a flôr de laranjeira.
E era uma mulher que deixava confusas
Todas as atenções, em muda
admiração,
Tinha o cabêlo negro e a côr das andaluzas,
Tinha no
olhar do Sonho a magica atracção.
Do seu corpo harmonioso, elastico, flexivel,
Emanava uma essencia
etherea, imponderavel,
Como emana, em fragor penetrante,
invencivel,
Um perfume subtil d'uma seda impalpavel:
Tinha a ardente magia
--Das sereias gentis da Andaluzia,--
Que têm gestos sublimes,
E meneios risonhos
Tinha a flexibilidade
elastica dos vimes
E a estrutura diáfana dos sonhos.
Nos grandes olhos doces,
Lindos como dois céus, negros como dois
crimes,
Relampejantes, humidos, quebrados,
Guadalquivires dormentes,
socegados,
Vastos como horisontes,
Tinha da Andaluzia a Alhambra, os eirados,

Os famosos jardins embalsamados,
Onde amavam mulheres e
murmuravam fontes.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Depois saiu o noivo, e ó Crueldade ignara,
Irradiára a razão nos olhos
de Leonor,
E a grande flôr divina, a flôr mimosa e rara
Reconheceu
no noivo o seu primeiro amor.
Caminhavam os dois, gloriosos, triunfaes,
Rodeados d'uma aureola
etherea, luminosa,
Entre os alegres sons dos sinos festivaes,
Numa
expansão d'amor profunda e victoriosa.
Pelo braço um do outro, altivos, orgulhosos,
Iam cheios de gloria e
cheios de esplendores,
Inundava-os o sol em beijos luminosos
E as
creanças, sorrindo, atiravam-lhes flôres.
E no tragico assombro, a triste doida então,
A pobre bella e Santa, a
timida Leonor,
Sentiu despedaçar-se o terno coração
No convulso
derruir titânico da Dôr.
No olhar lhe fusilou uma colera santa,
Recup'rára a Razão para perder
a Vida,
Saiu-lhe uma blasfemia ardente da garganta,
Cambaleou
afinal, como se fosse ferida,
Deu tres ou quatro passos,
Estendeu em convulsões galvânicas os
braços,
E abrindo, sufocada, a baixa porta,
Sem um ai nem um beijo,
Veiu cair exanime, já morta,
No meio do cortejo.

Ouviram-se então sons plangentes e divinos
De dobres, de sinaes de

luto e de viuvez.
Era a toada melancolica dos sinos
Por Leonor a
tocar pela primeira vez.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quantas de vós tambem, lindas creanças,
Que architectaes angelicas
esperanças
No vosso coração,
Não ides perfumar as sepulturas,
Co'as frontes
virginaes, as fórmas puras,
No pequenino leito d'um caixão!
Pensai: quantas de vós ouvis os sinos
Em desejos
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 7
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.