profundamente azul.
Fugi das noites calmas, mornas luarisadas,
Em que o encanto nos
vence e o espasmo em nós actua!
Loucas de muito amor, fugi ás
guitarradas,
Escravas da Paixão, tende medo da Lua!
De manhã, quando o Sol clareava o horizonte
E o rouxinol findava a
amena cavatina,
Despediam-se então com um beijo na fronte,
S'tenuados d'amor d'essa noite divina.
Mas Leonor ficava ainda por instantes,
Espalhados ao vento os seus
cabêlos finos,
E mergulhava a alma em sonhos delirantes,
Na doce
vibração harmonica dos sinos.
Durou pouco o Amor, porém, assim feliz!
O Amor, o eterno Amor!
que inconsistente liga!
Ninguem como ella o quiz! ninguem como
elle a quiz!
Separou-os, porém, o cru punhal da Intriga.
A Intriga é essa mulher que ao cisne que descreve
Um sulco encantador
No lago, branco e leve,
Tenta com mancha
escura enodoar-lhe a côr,
E transformada em neve
É a geada que queima a delicada flôr.
Leonor endoideceu, então, cheia de magua,
Na janella, a sonhar... a
cantar... a chorar...
E vinham-lhe ao olhar per'las de sangue e d'agua
Quando ouvia na torre os sinos a tocar.
E empalidecia a incomparavel face,
Essa ideal belleza,
Como uma ave azul que se afogasse
Em ondas
de loucura e de tristeza.
Dizia então:
«Lá vão nos coches os casados,
Cheios de luz na fronte e
resplendente o olhar...
Vejo-os... Vejo-os unir os labios orvalhados,
Como lindos rubis, mimosas per'las
Num unico colar!
Virgem, tu que sofreste a tragica Paixão,
Com os peitos golpeados,
Tirae-me o coração,
Arrancai-m'o aos
bocados!
Viste o heroico Jesus, o Propheta incançavel
Nos braços
d'uma Cruz, Olimpica Rainha,
E apesar d'essa dôr enorme e
incomparavel
Não sei qual foi maior, se a tua dôr, se a minha!
Perdi
o noivo! e eu quiz que nunca mais bradasses
Na tua bronzea voz! ó
Sino, que irrisão!
P'ra que os Sinos ouvir, a annunciar enlaces,
Se para mim não tocam...
Nem nunca tocarão!»
Tinha acabado a doida de fallar,
Doida gentil de olhos azues e vagos,
Tendo na fixidez macia do olhar
A immobilidade terna e mistica
dos lagos.
E os sinos do mosteiro, alem, fortes, vibrantes,
Espalhavam no ar
notas bruscas, ligeiras,
Claras como cristaes, vivas como diamantes,
E como o desfraldar de sonoras bandeiras.
Tudo se agita em espanto e a villa inteira corre,
Os homens, as
mulheres, os rôtos pequeninos
Ao sentirem cair, cristalina, da torre,
A chuva torrencial do repique dos sinos.
Leonor ouvia, ouvia, a chorar e a tremer,
Aquêles sons joviaes dos
sinos a tocar.
Era a primeira vez que alegres os viu ser,
E era a
primeira vez que os ouvia a chorar!
E emquanto o sino ria esses risos saudaveis
Das creanças gentis, dos
anjos pequeninos,
A agua viu cair dos olhos adoraveis
Na
alacridade vaga e mistica dos sinos.
De repente, saiu da igreja uma donzella,
Vestida a seda azul, numa
expansão inteira,
E Leonor estendia o corpo na janella,
Ao ver-lhe
no cabêlo a flôr de laranjeira.
E era uma mulher que deixava confusas
Todas as atenções, em muda
admiração,
Tinha o cabêlo negro e a côr das andaluzas,
Tinha no
olhar do Sonho a magica atracção.
Do seu corpo harmonioso, elastico, flexivel,
Emanava uma essencia
etherea, imponderavel,
Como emana, em fragor penetrante,
invencivel,
Um perfume subtil d'uma seda impalpavel:
Tinha a ardente magia
--Das sereias gentis da Andaluzia,--
Que têm gestos sublimes,
E meneios risonhos
Tinha a flexibilidade
elastica dos vimes
E a estrutura diáfana dos sonhos.
Nos grandes olhos doces,
Lindos como dois céus, negros como dois
crimes,
Relampejantes, humidos, quebrados,
Guadalquivires dormentes,
socegados,
Vastos como horisontes,
Tinha da Andaluzia a Alhambra, os eirados,
Os famosos jardins embalsamados,
Onde amavam mulheres e
murmuravam fontes.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Depois saiu o noivo, e ó Crueldade ignara,
Irradiára a razão nos olhos
de Leonor,
E a grande flôr divina, a flôr mimosa e rara
Reconheceu
no noivo o seu primeiro amor.
Caminhavam os dois, gloriosos, triunfaes,
Rodeados d'uma aureola
etherea, luminosa,
Entre os alegres sons dos sinos festivaes,
Numa
expansão d'amor profunda e victoriosa.
Pelo braço um do outro, altivos, orgulhosos,
Iam cheios de gloria e
cheios de esplendores,
Inundava-os o sol em beijos luminosos
E as
creanças, sorrindo, atiravam-lhes flôres.
E no tragico assombro, a triste doida então,
A pobre bella e Santa, a
timida Leonor,
Sentiu despedaçar-se o terno coração
No convulso
derruir titânico da Dôr.
No olhar lhe fusilou uma colera santa,
Recup'rára a Razão para perder
a Vida,
Saiu-lhe uma blasfemia ardente da garganta,
Cambaleou
afinal, como se fosse ferida,
Deu tres ou quatro passos,
Estendeu em convulsões galvânicas os
braços,
E abrindo, sufocada, a baixa porta,
Sem um ai nem um beijo,
Veiu cair exanime, já morta,
No meio do cortejo.
Ouviram-se então sons plangentes e divinos
De dobres, de sinaes de
luto e de viuvez.
Era a toada melancolica dos sinos
Por Leonor a
tocar pela primeira vez.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quantas de vós tambem, lindas creanças,
Que architectaes angelicas
esperanças
No vosso coração,
Não ides perfumar as sepulturas,
Co'as frontes
virginaes, as fórmas puras,
No pequenino leito d'um caixão!
Pensai: quantas de vós ouvis os sinos
Em desejos
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