Os Sinos | Page 2

Raul Proença
afflicção do derradeiro adeus.
E em sua solidão sob'rana, ingente, estoica,
Levantando-se ao céu e
dominando o val',
Os sinos tinham sons d'uma doçura heroica,
Com
soluços de bronze e risos de cristal.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E mesmo em frente d'elle, do lado d'onde nasce
O Sol, na sua diurna
e rapida carreira,
Habitava Leonor, flôr misteriosa e rara,
--Das bellas a primeira.--
P'ra poder descrever o oval da sua face,
O jaspe setinoso e macio da
cara,
O brilho d'esse olhar, p'ra poder defini-lo,
Seria necessario o
maior genio humano
--A luz que coloriu as Venus de Ticiano,
O
pincel que pintou as virgens de Murillo.
Para poder pintar o seu cabêlo farto,
Seria necessaria a arte soberana,

A divina expressão artistica d'el Sarto
E a magia de côr da escola

veneziana.
A bôca era vermelha, ardente, sensual,
O beijo desafiando ao minimo
trejeito.
Quanta paixão não fez o seu olhar leal!
Quanto amor não
bateu, sem resposta, ao seu peito!
Tinha um olhar azul, envolvente, magnetico,
Cheio de embriaguez,
de electricas caricias;
Olhá-lo--era ficar para sempre apoplectico,

Absorvido p'ra sempre em dois mares de delicias.
Causava uma magia o seu azul olhar,
Parecia do _haschich_ o sonho
voluptuoso.
Era feito da renda ethérea do luar...
Que renda
transparente a d'esse olhar formoso!
Deviam ser assim os olhos de Julieta,
Quebrado o doce olhar em
morna languidez,
Quando vinha ao balcão falar ao meigo poeta,
Ao
classico Romeu do grande poeta inglês.
E os seus olhos azues, dois sonhos sideraes,
Eram na bella face
alabastrina, as puras
Emanações da luz astral dos Ideaes,
Eram dois
mares vaporosos de tonturas.
O sorrir provocava um languido desmaio,
Era o sorriso bom de
Glycéra ou de Leda,
Tinha o calor fecundo e são do sol de maio
E a
doce suavidade tépida da seda.
Tinha a regia altivez, um porte de rainha
E a graça virginal d'uma
criança pura,
E sentia-se o mimo alado da andorinha
Na graça
flexuosa e leve da cintura.
E que direi então da voz harmoniosa,
D'essa voz penetrante, angelica
e maguada?!
Ouvi-la, era sentir uma pét'la de rosa
A roçar o ouvido,
em voz cristalizada.
E tudo era um contraste excentrico, distinto,
Tinha o poder do Inferno
e o enlevo dos archanjos,
Olhá-la--era sentir a embriaguez do

absintho,
Ouvi-la--era escutar a propria voz dos anjos.
E em frente da janella o mosteiro vetusto
Vibrava de onde em onde
os seus toques divinos.
Então vinha á janella, e o delicado busto

Mergulhava na onda electrica dos sinos.

Passava a Mocidade altiva para vê-la,
Da terra a fina flôr lhe vinha
confessar
O seu ardente amor, debaixo da janella,
Á luz inebriante e
meiga do luar.
A guitarra gemia. As damas hespanholas
Não tinham mais cantar's
debaixo do balcão.
Ouvia-se o lamento estranho das violas...
O riso
do prazer e o chôro da Paixão.
Serenatas gentis passavam, quasi a medo,
Com a ternura ideal dos
fados portuguêses,
E dizia-se até, em voz baixa, em segredo,
Que
ali, mortos d'amor, vinham também marquêses.
Ouviam-se nascer suspiros maviosos
Das cordas musicaes, ternas,
inebriantes,
Brotavam do luar afagos silenciosos,
Dimanavam do
céu ondas de diamantes.
E ante taes expressões e cantos peregrinos,
A linda dama então, sem
ouvir nem olhar,
Absorvia-se mais no cantico dos sinos,
E deixava
a viola, a cantar e a chorar...

Mas uma vez... A noite era electrica, etherea,
Luminosa, explendente,
Adquirira voz e sonhos a Materia...
O
aroma era mais suave... o luar era mais quente...
Sentiam-se sonhar embriagadoramente
Lirios, como D. Juans, rosas,
como as Ofélias,
E até o proprio ar tinha uma voz gemente
Ao

beijar, soluçante, as rosas e as camelias.
Sob a janella um Poeta altivo e orgulhoso
Acertou de passar,
cantando meiga trova...
E então Leonor sentiu o fremito do gozo,
A
estranha sensação d'uma volupia nova.
Naquêle ardente olhar tinha ella conhecido
O philtro da Paixão,
enervante e sereno...
Quantas de vós, tambem, não tendes já bebido

No vosso negro olhar esse fatal veneno!
O amor, elle que iguala as raças e as nobrezas
E que possue as forças
das paixões damninhas
Que faz curvar os réis ao pé das camponezas

E faz deitar plebeus nos leitos das rainhas;
O amor, elle que faz dormir as violetas
Junto aos cravos gentis, junto
aos lirios suaves,
Transpusera a cantar suas pupilas pretas,
Como
ninhos de sonho onde adormecem aves.
A viola gemia...
E p'la primeira vez
Leonor se pôs a ouvir a
languida harmonia,
Em louca embriaguez.
E ao deitar-se... sentindo a voz eclesiastica
Do sino do convento, o
sino feiticeiro,
Julgou ser a viola, inefavel, fantastica,
Que estivesse
a vibrar na torre do mosteiro.

Foi uma paixão louca, ardente, doentia,
E o nosso triste poeta, a sorrir
e a cantar,
A cantar e a sorrir, todas as noites ia
Envolver Leonor
num manto de luar.
Quantos beijos d'amor, humidos, vagarosos,
Pondo ás vezes no labio
um lenço de Bretagne!
Eram beijos sensuaes, vermelhos, capitosos,

Como o estrepido audaz do vinho de Champagne!

Fundiam-se em abraços, tremulos, nervosos,
Com tepidas caricias,
Mudas contemplações, extasis silenciosos,
Profundos, vagarosos,
Em extranhas sensações de celestiaes delicias.
Depois aconteceu o que com taes assumptos
Costuma acontecer, de
Londres a Stambul;
Os nossos dois amores adormeceram juntos

Sob a cup'la do céu
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