Os Simples | Page 8

Guerra Junqueiro
dolentes
Do luar dorido!...
Ai ao relento, ai ao relento sonham pegureiros!...
Cama tão fresca!...
cobertor branco, de jasmineiros...
Cahi maviosas,
Cahi somnambulas, piedosas,
Concavas tristezas do
luar magoado!
Resonancias d'orgão do luar magoado!

Extrema-unções profundas do luar magoado!
Sincopes, oblivios,
quietações chorosas
Do luar magoado!...
Ai ao relento, ai ao relento sonha a boeirinha!...
Cama de violetas!...
que lhe fez a Virgem, sua madrinha...
Cahi radiantes,
Angelisantes,
Esfolhados lirios do luar divino!

Musselina argentea do luar divino!
Halitos de leite do luar divino!

Perolas, opalas, beijos e diamantes
Do luar divino!...
Ai ao relento, ai ao relento as bisavós dormindo!...
Cama de rosas,
sobre-ceo d'astros!... que sonho lindo!...
Cahi cantando,
Cahi mas brando, muito brando,
Misticas nevadas
do luar de prata!
Linho da candura do luar de prata!
Angelus da
ermida do luar de prata!
Extasis boiando, sagrações ondeando
No
luar de prata!...

Dormi, dormi!... que bellas camas!... ai, que bons lençoes!... Na
travesseira, que bem que cheira! cantam roussinoes!...
Dorme de costas, cavador, ao luar, ao luar de neve!...
Ai, como a terra
era pesada, e se fez leve, leve!...
Dorme, pastor, ao luar de Junho, dorme sem cuidado!...
Que anda a
Senhora dos Montes-Ermos a guardar-te o gado...
Durmam velhinhas! durmam creanças! durmam donzellas!
Quando
acordarem já tem os anjos á espera d'ellas...
Ha-de acordar tudo lá nos ceos doirados...
Ha-de haver banquetes,
ha-de haver noivados...
Põe a mesa a Virgem para os pobresinhos...
Ai, que lindos fructos!...
ai, que ricos vinhos!...
Vinhos d'um vinhedo, fructos d'um pomar,
Que no ceo os anjos
regam com luar...
Ordenhando ovelhas andam serafins,
Cantarinhos d'oiro, leite de
jasmins.
Outros nas arribas crestam as colmeias,
Grandes favos brancos como
luas cheias.
Ai, que bom almoço, feito n'um vergel,
Pomos cor de aurora, leite,
vinho e mel!...
Para as avósinhas tem lá Deos bastantes
Fusos d'esmeraldas, rocas de
diamantes...
Como vós, ó moças, lá no ceo casaes,
Ellas darão teias para os
enxovaes...
Já no setestrello dançam nos terreiros,
Tamboris e violas, frautas e

pandeiros...
Já lá vejo os noivos, com S. João á espera,
N'uma ermida branca
revestida d'hera...
Ai, dormi, donzellas, ai dormi ao luar,
Que no ceo com anjos vos ireis
casar...
Ai, dormi, creanças! que no azul divino
Brincareis alegres com o
Deos-menino...
Partirá comvosco, porque é vosso irmão,
A laranja,--o mundo, que lá
tem na mão...
Dormi, dormi, sem dor, sem penas...
Dormi, dormi!...
E em vossos
leitos florescentes,
De rosas brancas e assucenas,
Caiam dormentes,

Caiam exanimes, trementes,
Graças do baptismo do luar alvissimo!

Beijos do noivado do luar purissimo!
Lagrimas da morte do luar
tristissimo!
Canticos d'exequias, orações dolentes
Do luar
santissimo!...
Abril--91.
*EPILOGO*
REGRESSO AO LAR
Ai, ha quantos anos que eu parti chorando
D'este meu saudoso,
carinhoso lar!...
Foi ha vinte?... ha trinta?... Nem eu sei já quando!...

Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me
eu lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta á Vida...
Só achei enganos,
decepções, pesar...
Oh! a ingenua alma tão desiludida!...
Minha
velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas maguas no
embaciado olhar!
Nunca eu sahira do meu ninho estreito!...
Minha
velha ama, que me déste o peito,
Canta-me cantigas para me
embalar!...
Poz-me Deos outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d'astros, gemas
de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama,
sou um pobresinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...
Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...)
deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha
ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes,
como á noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a
minh'alma durma, tenha paz, descanço,
Quando a Morte, em breve,
m'a vier buscar!...
90.
*NOTA*
NOTA
É este o primeiro dos tres volumesinhos, que hão-de encerrar as minhas
liricas ineditas. Os outros dois--Flores de Ideal_--e _Infinito (_Livro
d'orações_) virão a lume successivamente, com intervalos de mezes.
Duas palavras sobre os Simples.
Precocemente chegado, pelo sofrimento, ao ocaso da vida, atravessei ha
anos um periodo agudo, bem doloroso e triste, mas ao mesmo tempo
salutar. Ante a morte proxima, n'uma anciedade inenarravel, senti-me
electrisado, como por encanto, de energias subitas. O problema do alem
(como agora se diz) impunha-se, dilacerante e devorador, á minha
natureza inquieta de religioso e de metafisico. Mas o problema da
morte é, no fundo, o problema da vida. Estudei, pensei, meditei. Li com

sofreguidão milhares de paginas. Dias, noites, semanas, mezes, revolvi
no cerebro escandecido todos os enigmas torturantes. Pedi á historia
natural (unica historia verdadeira) o segredo intimo das coisas.
Questionei a razão, ouvi a consciencia. Dei balanço a mim proprio. E
consegui, ao cabo, o que desejava: ter da vida, ter do universo uma
ideia metodica e definitiva. Qual? Não é este o momento de dizel-o,
nem isso interessa seguramente.
A minha metafisica é para uso proprio. Não construi um sistema de
filosofia humana. Tratei de responder apenas ás duvidas e curiosidades
do meu espiríto. Não cheguei sequer a pontos de vista fundamentaes,
muitissimo diversos dos que já tinha anteriormente. Mas o que era
intuição tornou-se certeza, e o que era hipotese, mais ou menos
sentimental e imaginaria, transformou-se
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