que se encoste?! Tudo impalpável, fugaz, incerto, ilusório, ilimitado... tudo vida, tudo sonho, tudo voragem... Se baixa os olhos do imenso ao gr?o de areia, o gr?o de areia, infinitésimo, resolve-se-lhe em vidas infinitas. Quer contemple o universo, quer examine um corpúsculo, a alma engolfa-se, estonteada, no mesmo abismo devorador e criador.
Abismo de aparências ocultas, abismo de vozes que se n?o ouvem. A natureza taciturna exprime-se magicamente, em línguas vagas, silenciosas. E quando num pouco de cisco murmuram mais vontades do que bocas humanas há na terra, o que n?o dirá o colóquio formidando de todas as vontades do universo! Tem cada organismo a sua língua peculiar. Os que vivem mais próximos entendem-se melhor. O ar segreda à água, a raiz ao lodo, a luz à folha, o pólen ao ovário. Há fluidos que se casam, raízes que se querem bem. O oxigénio é íntimo do ferro, o azougue é íntimo do ouro. Os orbes fraternizam, os metais amalgamam-se, e as electricidades sexuadas buscam-se avidamente, para copular!
Matéria infinita,--for?as infinitas, infinitamente caminhando. E no pélago vertiginoso da mobilidade universal é cada átomo invisível um desejo que nasce, um desejo que sente, um desejo que fala...
O lexicon sem principio nem fim, das vozes mudas do incriado, das línguas tácitas da natureza, alguém o ouviu que se recorde? Alguém: o homem. O homem, crisálida do anjo, foi monstro e planta e verme e rocha e onda; foi nebulosa, foi gás impalpável, foi éter invisível. Articulou todas as línguas, e delas conserva, obscuramente, vagas memórias dormitando. Por isso os poetas adivinham, e raros com a intui??o prodigiosa do meu amigo.
Abreviando: A sua alma, diante do universo, reagiu por três formas ou em três fases emotivas. Estudei a primeira,--a emo??o dinamica. O mundo resolve-se-lhe num jogo de for?as, num conflito de vontades, brigando, casando-se, transfigurando-se em aparências rápidas, ilusórias. Tudo se move, tudo quer e tudo vive.
Mas o que é a vida? Chega à segunda fase. Desliza da emo??o dinamica à emo??o moral. Depois de ver o mundo através dos sentidos, julga-o através da raz?o e da consciência.
O que é a vida?
A vida é o mal. A express?o última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distancia que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada.
Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas de a?o, os intestinos de bronze, o olhar de relampagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando labaredas, vomitando morte.
A pata pré-histórica do atlantossauro esmagava o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a preza do mastodonte escavacava um cedro, o canh?o Krup rebenta baluartes e trincheiras. Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasa uma capital.
Os grandes monstros n?o chegam verdadeiramente na época secundária; aparecem na última, com o homem. Ao pé dum Napole?o um megalossauro é uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milh?es e milh?es de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos padres e à gula devoradora da burguesia crist? e democrática. O matadoiro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. Uns nascem para reses, outros para verdugos. Uns jantam, outros s?o jantados. Há criaturas l?bregas, vestidas de trapos, minando montes, e criaturas esplêndidas, cobertas de oiro e de veludo, radiando ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobrezas metalizadas. Há homens que ceiam numa noite um bairro fúnebre de mendigos. Enfeitam gargantas de cortes?s rosários de esmeraldas e diamantes, bem mais sinistros e lutuosos que rosários de cranios ao peito de selvagens.
Vivem quadrúpedes em estrebarias de mármore, e agonizam párias em alfurjas infectas, roídos de vermes. A latrina de Vanderbilt custou aldeolas de miseráveis. E, visto os palácios devorarem pocilgas, todo o boulevard grandioso reclama um quartel, um cárcere e uma forca. O deus milh?o n?o digere sem a guilhotina de sentinela. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinh?o. Homens que têm impérios, e homens que n?o têm lar.
Os pés mimosos das princesas deslizam luzentes de oiro por alfombras, e os pés vagabundos calcam, sangrando, rochedos hirtos e matagais. Bebem champagne alguns cavalos do sport, usam anéis de brilhantes alguns c?es de rega?o, e algumas criaturas, por falta duma c?dea, acendem fogareiros para morrer. Bendito o óxido de carbono, que exala paz e esquecimento! E a natureza, insensível ao drama bárbaro do homem! Guerras, ódios, crimes, tiranias, hecatombes, desastres, iniquidades, deixam-na t?o indiferente e inconsciente,
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