Os Lusíadas | Page 9

Luís Vaz de Camões
fabricada,?Como por fora ao longe descobria,?Regida por um Rei de antiga idade:?Momba?a é o nome da ilha e da cidade.
104?E sendo a ela o Capit?o chegado,?Estranhamente ledo, porque espera?De poder ver o povo batizado,?Como o falso piloto lhe dissera,?Eis vêm batéis da terra com recado?Do Rei, que já sabia a gente que era:?Que Baco muito de antes o avisara,?Na forma doutro Mouro, que tomara.
105?O recado que trazem é de amigos,?Mas debaixo o veneno vem coberto;?Que os pensamentos eram de inimigos,?Segundo foi o engano descoberto.?ó grandes e gravíssimos perigos!?ó caminho de vida nunca certo:?Que aonde a gente p?e sua esperan?a,?Tenha a vida t?o pouca seguran?a!
106?No mar tanta tormenta, e tanto dano,?Tantas vezes a morte apercebida!?Na terra tanta guerra, tanto engano,?Tanta necessidade avorrecida!?Onde pode acolher-se um fraco humano,?Onde terá segura a curta vida,?Que n?o se arme, e se indigne o Céu sereno?Contra um bicho da terra t?o pequeno?
Canto Segundo
1?Já neste tempo o lúcido Planeta,?Que as horas vai do dia distinguindo,?Chegava à desejada e lenta meta,?A luz celeste às gentes encobrindo,?E da casa marítima secreta?Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,?Quando as infidas gentes se chegaram?As naus, que pouco havia que ancoraram.
2?Dentre eles um, que traz encomendado?O mortífero engano, assim dizia:?"Capit?o valeroso, que cortado?Tens de Neptuno o reino e salsa via,?O Rei que manda esta ilha, alvoro?ado?Da vinda tua, tem tanta alegria,?Que n?o deseja mais que agasalhar-te,?Ver-te, e do necessário reformar-te.
3?"E porque está em extremo desejoso?De te ver, como cousa nomeada,?Te roga que, de nada receoso,?Entres a barra, tu com toda armada:?E porque do caminho trabalhoso?Trarás a gente débil e cansada,?Diz que na terra podes reformá-la,?Que a natureza obriga a desejá-la.
4?"E se buscando vás mercadoria?Que produze o aurífero Levante,?Canela, cravo, ardente especiaria,?Ou droga salutífera e prestante;?Ou se queres luzente pedraria,?O rubi fino, o rígido diamante,?Daqui levarás tudo t?o sobejo?Com que fa?as o fim a teu desejo."
5?Ao mensageiro o Capit?o responde?As palavras do Rei agradecendo:?E diz que, porque o Sol no mar se esconde,?N?o entra para dentro, obedecendo;?Porém que, como a luz mostrar por onde?Vá sem perigo a frota, n?o temendo,?Cumprirá sem receio seu mandado,?Que a mais por tal senhor está obrigado.
6?Pergunta-lhe depois, se est?o na terra?Crist?os, como o piloto lhe dizia;?O mensageiro astuto, que n?o erra,?Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.?Desta sorte do peito lhe desterra?Toda a suspeita e cauta fantasia;?Por onde o Capit?o seguramente?Se fia da infiel e falsa gente.
7?E de alguns que trazia condenados?Por culpas e por feitos vergonhosos,?Por que pudessem ser aventurados?Em casos desta sorte duvidosos,?Manda dous mais sagazes, ensaiados,?Por que notem dos Mouros enganosos?A cidade e poder, e por que vejam?Os Crist?os, que só tanto ver desejam.
8?E por estes ao Rei presentes manda,?Por que a boa vontade, que mostrava,?Tenha firme, segura, limpa e branda;?A qual bem ao contrário em tudo estava.?Já a companhia pérfida e nefanda?Das naus se despedia e o mar cortava:?Foram com gestos ledos e fingidos,?Os dous da frota em terra recebidos.
9?E depois que ao Rei apresentaram,?Co'o recado, os presentes que traziam,?A cidade correram, e notaram?Muito menos daquilo que queriam;?Que os Mouros cautelosos se guardaras?De lhes mostrarem tudo o que pediam:?Que onde reina a malícia, está o receio,?Que a faz imaginar no peito alheio.
10?Mas aquele que sempre a mocidade?Tem no rosto perpétua, e foi nascido?De duas m?es, que urdia a falsidade?Por ver o navegante destruído,?Estava numa casa da cidade,?Com rosto humano e hábito fingido,?Mostrando-se Crist?o, e fabricava?Um altar sumptuoso, que adorava.
11?Ali tinha em retrato afigurada?Do alto e Santo Espírito a pintura:?A candida pombinha debuxada?Sobre a única Fénix, Virgem pura;?A companhia santa está pintada?Dos doze, t?o torvados na figura,?Como os que, só das línguas que caíram,?De fogo, várias línguas referiram.
12?Aqui os dous companheiros conduzidos?Onde com este engano Baco estava,?P?em em terra os giolhos, e os sentidos?Naquele Deus que o mundo governava.?Os cheiros excelentes, produzidos?Na Pancaia odorífera, queimava?O Tioneu, e assim por derradeiro?O falso Deus adora o verdadeiro.
13?Aqui foram de noite agasalhados,?Com todo o bom e honesto tratamento,?Os dous Crist?os, n?o vendo que enganados?Os tinha o falso e santo fingimento.?Mas assim como os raios espalhados?Do Sol foram no mundo, e num momento?Apareceu no rúbido horizonte?Da mo?a de Tit?o a roxa fronte,
14?Tornam da terra os Mouros co'o recado?Do Rei, para que entrassem, e consigo?Os dous que o Capit?o tinha mandado,?A quem se o Rei mostrou sincero amigo;?E sendo o Português certificado?De n?o haver receio de perigo,?E que gente de Cristo em terra havia,?Dentro no salso rio entrar queria.
15?Dizem-lhe os que mandou, que em terra?Sacras aras e sacerdote sinto; viram?Que ali se agasalharam o dormiram,?Enquanto a luz cobriu o escuro manto;?E que no Rei e gentes n?o sentiram?Sen?o contentamento e gosto tanto,?Que n?o podia certo haver suspeita?Numa mostra t?o clara e t?o perfeita.
16?Com isto o nobre Gama recebia?Alegremente os Mouros que subiam;?Que levemente um animo se fia?De mostras, que t?o certas pareciam.?A nau da gente pérfida se enchia,?Deixando a bordo os barcos que traziam.?Alegres vinham todos,
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 61
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.