Os Lusíadas | Page 7

Luís Vaz de Camões
que dá
alegria.
Tudo o Mouro contente bem recebe;
E muito mais contente
come e bebe.
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Está a gente marítima de Luso
Subida pela enxárcia, de
admirada,
Notando o estrangeiro modo e uso,
E a linguagem tão
bárbara e enleada.
Também o Mouro astuto está confuso,
Olhando a
cor, o trajo, e a forte armada;
E perguntando tudo, lhe dizia
"Se por
ventura vinham de Turquia?"
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E mais lhe diz também, que ver deseja
Os livros de sua Lei,
preceito eu fé,
Para ver se conforme à sua seja,
Ou se são dos de
Cristo, como Crê.
E porque tudo note e tudo veja,
Ao Capitão pedia
que lhe dê
Mostra das fortes armas de que usavam,
Quando co'os
inimigos pelejavam.

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Responde o valeroso Capitão
Por um, que a língua escura bem
sabia:
"Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
De mim, da Lei, das armas
que trazia.
Nem sou da terra, nem da geração
Das gentes enojosas
de Turquia:
Mas sou da forte Europa belicosa,
Busco as terras da
índia tão famosa.
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A lei tenho daquele, a cujo império
Obedece o visíbil e ínvisíbil

Aquele que criou todo o Hemisfério,
Tudo o que sente, o todo o
insensíbil;
Que padeceu desonra e vitupério,
Sofrendo morte injusta
e insofríbil,
E que do Céu à Terra, enfim desceu,
Por subir os
mortais da Terra ao Céu.
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Deste Deus-Homem, alto e infinito,
Os livros, que tu pedes não
trazia,
Que bem posso escusar trazer escrito
Em papel o que na
alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,

Cumprido esse desejo te seria;
Como amigo as verás; porque eu me
obrigo,
Que nunca as queiras ver como inimigo."
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Isto dizendo, manda os diligentes
Ministros amostrar as
armaduras:
Vêm arneses, e peitos reluzentes,
Malhas finas, e
lâminas seguras,
Escudos de pinturas diferentes,
Pelouros,
espingardas de aço puras,
Arcos, e sagitíferas aljavas,
Partazanas
agudas, chuças bravas:
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As bombas vêm de fogo, e juntamente
As panelas sulfúreas, tão
danosas;
Porém aos de Vulcano não consente
Que dêem fogo às
bombardas temerosas;
Porque o generoso ânimo e valente,
Entre
gentes tão poucas e medrosas,
Não mostra quanto pode, e com razão,

Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.
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Porém disto, que o Mouro aqui notou,
E de tudo o que viu com
olho atento
Um ódio certo na alma lhe ficou,
Uma vontade má de
pensamento.
Nas mostras e no gesto o não mostrou;
Mas com
risonho e ledo fingimento
Tratá-los brandamente determina,
Até

que mostrar possa o que imagina.
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Pilotos lhe pedia o Capitão,
Por quem pudesse à Índia ser levado;

Diz-lhe que o largo prémio levarão
Do trabalho que nisso for
tomado.
Promete-lhos o Mouro, com tenção
De peito venenoso, e
tão danado,
Que a morte, se pudesse, neste dia,
Em lugar de pilotos
lhe daria.
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Tamanho o ódio foi, e a má vontade,
Que aos estrangeiros súbito
tomou,
Sabendo ser sequazes da verdade,
Que o Filho de David nos
ensinou.
ó segredos daquela Eternidade,
A quem juízo algum nunca
alcançou!
Que nunca falte um pérfido inimigo
Aqueles de quem
foste tanto amigo!
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Partiu-se Disto enfim coa companhia,
Das naus o falso Mouro
despedido,
Com enganosa e grande cortesia,
Com gesto ledo a
todos, e fingido.
Cortaram os batéis a curta via
Das águas de
Neptuno, e recebido
Na terra do obsequente ajuntamento
Se foi o
Mouro ao cógnito aposento.
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Do claro assento etóreo o grão Tebano,
Que da paternal coxa foi
nascido,
Olhando o ajuntamento Lusitano
Ao Mouro ser molesto e
avorrecido,
No pensamento cuida um falso engano,
Com que seja
de todo destruído.
E enquanto isto só na alma imaginava,
Consigo
estas palavras praticava:
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"Está do fado já determinado,
Que tamanhas vitórias, tão
famosas,
Hajam os Portugueses alcançado
Das Indianas gentes
belicosas.
E eu só, filho do Padre sublimado,
Com tantas qualidades
generosas,

Hei de sofrer que o fado favoreça
Outrem, por quem
meu nome se escureça?
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"Já quiseram os Deuses que tivesse
O filho de Filipo nesta parte

Tanto poder, que tudo submetesse
Debaixo de seu jugo o fero
Marte.
Mas há-se de sofrer que o fado desse
A tão poucos tamanho

esforço e arte,
Que eu co'o grão Macedónio, e o Romano,
Demos
lugar ao nome Lusitano?
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"Não será assim, porque antes que chegado
Seja este Capitão,
astutamente
Lhe será tanto engano fabricados
Que nunca veja as
partes do Oriente.
Eu descerei à Terra, e o indignado
Peito
revolverei da Maura gente;
Porque sempre por via irá direita
Quem
do oportuno tempo se aproveita."
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Isto dizendo, irado e quase insano,
Sobre a terra africana
descendeu,
Onde vestindo a forma e gesto humano,
Para o Prasso
sabido se moveu.
E por melhor tecer o astuto engano,
No gesto
natural se converteu
Dum Mouro, em Moçambique conhecido

Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.
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E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas
A sua falsidade
acomodadas,
Lhe diz como eram gentes roubadoras,
Estas que ora
de novo são chegadas;
Que das nações na costa moradoras

Correndo a fama veio que roubadas
Foram por estes homens que
passavam,
Que com pactos de paz sempre ancoravam.
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E sabe mais, lhe diz, como entendido
Tenho destes cristãos
sanguinolentos,
Que quase todo o mar têm destruído
Com roubos,
com incêndios violentos;
E trazem já de longe engano urdido

Contra nós; e que todos seus intentos
São para nos matarem e
roubarem,
E mulheres e filhos cativarem.
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"E também sei que tem determinado
De vir por água a terra
muito cedo
O Capitão dos seus acompanhado,
Que da tensão
danada nasce o medo.
Tu deves de ir também co'os teus armado

Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;
Porque, saindo a gente
descuidada,
Cairão facilmente
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