Os Lusíadas | Page 5

Luís Vaz de Camões
assentados,
Como a razão e

a ordem concertavam:
Precedem os antíguos mais honrados;
Mais
abaixo os menores se assentavam;
Quando Júpiter alto, assim dizendo,

C'um tom de voz começa, grave e horrendo:
24
"Eternos moradores do luzente
Estelífero pólo, e claro assento,

Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o
pensamento,
Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos fados
grandes certo intento,
Que por ela se esqueçam os humanos
De
Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
25
"Já lhe foi (bem o vistes) concedido
C'um poder tão singelo e tão
pequeno,
Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Toda a terra, que rega
o Tejo ameno:
Pois contra o Castelhano tão temido,
Sempre
alcançou favor do Céu sereno.
Assim que sempre, enfim, com fama e
glória,
Teve os troféus pendentes da vitória.
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"Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
Que coa gente de Rómulo
alcançaram,
Quando com Viriato, na inimiga
Guerra romana tanto
se afamaram;
Também deixo a memória, que os obriga
A grande
nome, quando alevantaram
Um por seu capitão, que peregrino

Fingiu na cerva espírito divino.
27
"Agora vedes bem que, cometendo
O duvidoso mar num lenho
leve,
Por vias nunca usadas, não temendo
De Áf rico e Noto a força,
a mais se atreve:
Que havendo tanto já que as partes vendo
Onde o
dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e porfia
A ver
os berços onde nasce o dia.
28
"Prometido lhe está do Fado eterno,
Cuja alta Lei não pode ser
quebrada,
Que tenham longos tempos o governo

Do mar, que vê do
Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro inverno;
A gente
vem perdida e trabalhada;
Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada a nova terra, que deseja.
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"E porque, como vistes, têm passados
Na viagem tão ásperos

perigos,
Tantos climas e céus experimentados,
Tanto furor de
ventos inimigos,
Que sejam, determino, agasalhados
Nesta costa
africana, como amigos.
E tendo guarnecida a lassa frota,
Tornarão a
seguir sua longa rota."
30
Estas palavras Júpiter dizia,
Quando os Deuses por ordem
respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões diversas
dando e recebendo.
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter
disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente,
Se lá
passar a Lusitana gente.
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Ouvido tinha aos Fados que viria
Uma gente fortíssima de
Espanha
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da índia tudo quanto Dóris
banha,
E com novas vitórias venceria
A fama antiga, ou sua, ou
fosse estranha.
Altamente lhe dói perder a glória,
De que Nisa
celebra inda a memória.
32
Vê que já teve o Indo sojugado,
E nunca lhe tirou Fortuna, ou
caso,
Por vencedor da Índia ser cantado
De quantos bebem a água
de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão célebre nome
em negro vaso
D'água do esquecimento, se lá chegam
Os fortes
Portugueses, que navegam.
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Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana,

Por quantas qualidades via nela
Da antiga tão amada sua Romana;

Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra
Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca
corrupção crê que é a Latina.
34
Estas causas moviam Citereia,

E mais, porque das Parcas claro
entende
Que há de ser celebrada a clara Deia,
Onde a gente belígera
se estende.
Assim que, um pela infâmia, que arreceia,
E o outro
pelas honras, que pretende,
Debatem, e na porfia permanecem;
A
qualquer seus amigos favorecem.

35
Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura
De silvestre arvoredo
abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com ímpeto e
braveza desmedida;
Brama toda a montanha, o som murmura,

Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto
levantado,
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.
36
Mas Marte, que da Deusa sustentava
Entre todos as partes em
porfia,
Ou porque o amor antigo o obrigava,
Ou porque a gente
forte o merecia,
De entre os Deuses em pé se levantava:
Merencório
no gesto parecia;
O forte escudo ao colo pendurado
Deitando para
trás, medonho e irado,
37
A viseira do elmo de diamante
Alevantando um pouco, mui
seguro,
Por dar seu parecer, se pôs diante
De Júpiter, armado, forte
e duro:
E dando uma pancada penetrante,
Com o conto do bastão no
sólio puro,
O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
Um pouco a luz
perdeu, como enfiado.
38
E disse assim: "Ó Padre, a cujo império
Tudo aquilo obedece,
que criaste,
Se esta gente, que busca outro hemisfério,
Cuja valia, e
obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já
tanto tempo que ordenaste,
Não onças mais, pois és juiz direito,

Razões de quem parece que é suspeito.
39
"Que, se aqui a razão se não mostrasse
Vencida do temor
demasiado,
Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois que de
Luso vem, seu tão privado;
Mas esta tenção sua agora passe,
Porque
enfim vem de estâmago danado;
Que nunca tirará alheia inveja

O
bem, que outrem merece, e o Céu deseja.
40
"E tu, Padre de grande fortaleza,
Da determinação, que tens
tomada,
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa
começada.
Mercúrio, pois excede em ligeireza
Ao vento leve, e à
seta bem talhada,
Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
Da índia,

e onde a gente se reforme."
41
Como isto disse, o Padre poderoso,
A cabeça inclinando,
consentiu
No que disse Mavorte valeroso,
E néctar sobre todos
esparziu.
Pelo caminho Lácteo glorioso
Logo cada um dos Deuses
se partiu,
Fazendo seus reais acatamentos,
Para os determinados
aposentos.
42
Enquanto isto se passa na formosa
Casa etérea do Olimpo
onipotente,
Cortava o mar a gente belicosa,
Já lá da banda do
Austro e do
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