Os Bravos do Mindello | Page 8

Faustina da Fonseca
que em pilares de pedra a dividia ao meio, deixava dois grandes rectangulos destinados a alfobres e á horta, e continuava contra os altos muros negros de pedra solta ensombrando os passeios lateraes.
Reuniam-se todas as tardes no pomar, ao fim das larangeiras, das nespereiras, por baixo das quaes nascia silvestre a hortense, e conversavam até ao escurecer.
Só encontrou D. Josepha da Esperan?a e Jorge da Feteira sentados muito juntos, de m?os dadas, indolentemente reclinados no grande banco de pedra, com recosto de azulejos onde ca?adores, de chapeo tricorne, perseguiam lebres, acompanhados de c?es, quasi de pé como pessoas.
A falta d'ella permittiu-lhe serenar, confirmar-se no proposito de dizer-lhe tudo, de sair por uma vez do equivoco em que vivia.
N'uma aspereza que a tornava mais apetecivel, entrou Maria, saltando irrequieta, o chapeo deliciosamente deitado para os olhos, n'um simples vestido vermelho inteiro, de cintura alta, o collo a descoberto, de tres folhos na saia um tanto curta, deixando vêr o sapato branco, atado por fitas brancas, sobre a meia branca, no tornozêlo.
A sua simplicidade contrastava com o requinte de secia de Josepha, a opulenta juventude trasbordando de um rico vestido verde, de cinco folhos, com capoteira de renda em bicos, sapatos de duraque preto, cabello penteado atraz em cuia, apartado ao meio na frente, grandes tufos nas fontes, um fio de perolas na testa, desvelos de toucador destinados ao primo Jorge, que por sua parte caprichava em vestir grosseiramente á D. Miguel, jaqueta de alamares, cinta, cal??o, botas de prateleira, bóné azul, cabello puchado para as fontes, cara rapada, porque o bigode denotava á legua constitucional.
Andava pela edade de Jo?o, mas parecia mais nova. As doen?as da meninice, as convuls?es com que a dotára o alcoolismo paterno, as impurezas do sangue azul dos casamentos consanguineos tinham-lhe dado a fragilidade ainda transparente na pallidez, nas fundas olheiras, no descorado dos labios. Por volta dos onze reagira, ganhára for?as, mercê do longo tratamento com que o pae gastára muito, na teima de assegurar emfim um herdeiro á casa, depois de tantos morgados e morgadas, cheios de pustulasinhas, mortos no ber?o.
Eram d'elle os olhos azues, desmaiados, o cabello castanho, e a express?o de aspereza que as sobrancelhas, contrahindo-se, ás vezes denotavam. Mas na boca pairava-lhe a terna brandura com que a m?e outrora se resignava aos beijos roubados por infindaveis legi?es de primos.
Afogueada pela pressa com que viera, Maria falou a Jo?o, e sentaram-se todos, encruzados, na relva, a comerem ma??s e marmelos assados no forno, trespassados de assucar, que ella trouxera no rega?o.
Falou-se da imprevista partida do navio, dos actos do governo da ilha, dando elle noticias com simulada indifferen?a.
Finda a merenda foram beber agua á pequena cascata do recanto da quinta onde se abrigavam a estufa de ananazes, e as largas folhas das bananeiras; amadureciam maracujás do tamanho de ovos c?r de chocolate; desenrolavam-se fetos de entre as pedras negras e vermelhas, fundidas pela lava em filigranas, em lagrimas; abriam em guarda sol as largas folhas ovaes do inhame por cima da valla onde escoava o regueiro, empo?ado em nodoas de agri?o.
Satisfeita a gulodice, que já lhe amea?ava de pontos negros os dentes miudos e mal implantados, Maria lan?ou-se para a rêde, que pendia indolente da ramada dos castanheiros, e juntando as m?os sob a cabe?a, fez d'ellas e dos bra?os, a sairem nús da manga arrega?ada, o travesseiro em que se reclinou indolente, cerrando os olhos, sorrindo a Jo?o.
Elle puchou uma cadeira de vimes e poz-se a baloi?al-a brandamente.
Ganhava-os o od?r estonteante das magnolias, o morno perfume adocicado recendente da estufa.
De m?os dadas afastavam-se pouco a pouco, os primos namorados até, como de costume, desapparecerem de todo.
Correspondia Jo?o ao infantil sorriso de Maria, e ha dois annos que n?o passavam d'ahi.
Estiveram muito tempo sem falar, no prazer mudo de se contemplarem, até que Jo?o estremeceu á ideia de a perder.
--Teve noticias do primo?--perguntou-lhe de repente, indo direito ao assumpto, sem prepara??o.
Ella respondeu indifferente, transportada no brando oscillar da rede:
--Sim. Está bem.
Apparentou desinteresse, mas insistiu:
--Sempre casam?
N'um movimento de contrariedade, que o animou a ir mais longe, disse Maria:
--Bem sabe que sim.
Ficaria outra vez interrompida a conversa??o, se elle, animado pelo que crêra adivinhar, n?o se arriscasse mais:
--E gosta?
--De quê?
--De casar.
N'um visivel enfado murmurou:
--Sei lá!
Muito nervoso, repetiu:
--Quero dizer se gosta de casar com elle.
Tirou-se da rede que, preoccupado, Jo?o deixára parar e n'um encolher de hombros:
--Se nunca o vi.
Foi lan?ar-se descontente no banco de pedra, a fronte ensombrada, no gesto do pae.
Ficou Jo?o um momento indeciso, e depois approximou-se vagaroso, offendido:
--Vejo que n?o é minha amiga.
--Porquê?
--Fala-me com mau modo...
--Eu?
--Com frieza, com indifferen?a...
--Para o que te havia de dar hoje!
E como elle se sentasse, succumbido, soltou uma risada, n'um impeto de volubilidade, e beliscou-o, no seu agreste feitio infantil.
--Isto ent?o é mau modo?
Ergueu-se elle corando, e supplicou:
--Por amor de Deus n?o brinque commigo!
--Estás amuado?
--Pelo menos
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