menino do c?ro; o que ainda parecia, apezar dos quarenta annos, pelo effeminado dos ademanes de aprendiz de clerigo, pelo tom rosado da face gorda e oleosa, a que a larga tonsura dava uma frescura de novo; e desapertando o cord?o de nós, clamou na voz de canna rachada, em que outr'ora cantava de falsete, limpando o suor ao len?o de Alcoba?a sujo de rapé:
--Veja e aprenda, Jo?osinho, como se pratíca a verdadeira egualdade, n?o a d'esses malditos clubs, mas a que é agradavel ao ceu! Aprenda, que está em edade. N'esta velha casa fidalga fraternisam, libando o vinho de Deus, dando gra?as ao Altissimo pelas suas obras, a nobreza representada no excellentissimo senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro, morgado dos Folhadaes, o clero n'este humilde servo do Senhor, e o povo n'esse vill?o, esse ninguem, esse bicho da terra, esse pó da estrada!--e apontava mestre Jacintho.--Exemplos d'estes, só na educa??o religiosa se encontram. E para isto n?o é preciso ser jacobino, nem republicano, nem pedreiro livre, nem cuspir na hostia consagrada!
Benzeu-se horrorisado e, sem transi??o, desceu do tom de prégador:
--Mas o Jo?osinho n?o bebeu nada. Vá lá. Um só n?o faz mal.
Encheu-lhe um copo, derramando vinho pela toalha, e deitou outro para si.
--Beba á saude do senhor morgado, e vamos para o terra?o, que se abafa de cal?r.
Habituado áquellas scenas, bebeu satisfeito Jo?o. Talvez lhe désse o vinho o animo preciso.
Saíram, o morgado á frente, equilibrando-se ao bord?o de marmeleiro polido, no apparato de uma vara de juiz, em gravidade processional; depois o frade, arrastando as sandalias, conchegando a proeminente barriga, levando no rega?o o cord?o e o rosario, que desapertara; Jo?o pisando respeitoso, ao de leve; e por fim o mestre Jacintho, muito curvado, rindo e falando comsigo mesmo.
Assentaram-se a nobreza e o clero na banqueta de azulejo, que corria ao longo da empêna da casa, no terra?o voltado para S. Matheus. Sentou-se Jo?o sem esperar convite, por direito proprio, considerando-se tanto ou quanto nobre, pelos fóros de fidalguia da espada do av?; e n'essa decis?o já reconhecia o effeito do vinho fazendo-lhe perder a usual timidez, e já acariciava a proxima entrevista com Maria. Disciplinado como soldado, e t?o firme quanto lhe era possivel, conservava-se mestre Jacintho de pé ante os seus superiores hierarchicos, chalaceando, contando historias de caserna, as m?os perto dos ouvidos, o rosto expandindo-se n'um sorriso de bom velhote.
Depois saíu Martinho Vasques com o jardineiro, a vêrem os trabalhos da quinta, e frei Angelico e Jo?o foram para o escriptorio.
Dobrado para a meza de saia de baeta vermelha, limpando no cabello a penna de pato, olhava a furto, pela janella fronteira, a varanda de pedra do fundo da quinta, onde passeavam á sombra da parreira, Maria, a prima que ia jantar com ella e passar a tarde, e Jorge da Feteira, namorado de D. Josepha da Esperan?a, que apparecia para a merenda.
Tinha ciumes do fidalgote que levava a confian?a de primo a beijar Maria á entrada e á saída, e invejava-lhe a liberdade em que andava com as duas raparigas ao fresco da tarde, pela recatada vastid?o do pomar.
Afastavam-se, mas elle espionava o quadro recortado pela janella na parede nua, e tornava a vêl-os notando a impaciencia com que o observavam.
Orgulhava-o esse interesse. Sabia que o estimavam, que o esperavam para a merenda, mas n?o deixava de reconhecer, por parte dos primos reunidos para falarem, o motivo d'essa espectativa, poderem afastar-se deixando Maria entretida com elle.
Deitado em cima da papeleira encetára o frade diversas folhas de papel, mas a penna de pato, rangendo muito, fazia-lhe uma lettra incerta, incomprehensivel, e a m?o tremula deixava cair borr?es que impossibilitavam a continua??o. Deitava-lhe areia, encanudava a folha e despejava-a no recipiente de chumbo, mas os pingos de tinta lá ficavam. E na ataranta??o de poupar meia folha de garatujas despejou-lhe por cima o proprio tinteiro, borrando o len?o, as m?os, todos os papeis do al?ap?o.
Rendeu-se ent?o á evidencia, reconheceu-se incapaz de escrever, e lan?ando-se para o hirto canapé de palhinha, tomou rascunhos de cartas e poz-se a ditar a Jo?o.
Entretido com a janella, elle escrevia machinalmente, repetia distrahido, errando o ditado; e fr. Angelico, sentindo a cabe?a pesada, crendo seu o engano, envergonhou-se do rapaz e deu por findo esse t?o pouco proveitoso trabalho.
Ia emfim desabafar!
Mas o acanhamento assaltava-o de novo, e ainda pensava adiar para mais tarde essa urgente expans?o.
Desceu ao pateo de entrada, abriu a cancella que dava para as trazeiras da casa, onde as gallinhas debicavam montes de estrume, e os filhos do quinteiro pulavam nos picos de matto ro?ado para o lume; passou por entre os chiqueiros, atravessou o jardim, rodeiou o repucho, contornou os taboleiros de onde vinha o cheiro penetrante dos cravos; e ao fim das ruas de buxo, abriu outro portal, e internou-se na quinta, por debaixo da latada
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